Uma sociologia dos estudantes de ciências humanas (por Bourdieu, em Os Herdeiros).

Segue abaixo uma longa citação retirada da magnífica obra de Bourdieu e Passeron, Os Herdeiros: os estudantes e a cultura, hoje um clássico da sociologia. O contexto é a França dos anos 60, mas muitas coisas me parecem praticamente iguais no contexto brasileiro atual, pelo menos no que pude presenciar ao longo dos anos de minha curta trajetória acadêmica.

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Numa população de estudantes, não se aprende mais que o resultado final de um conjunto de influências decorrentes da origem social e cuja ação exerce-se há muito tempo. Para os estudantes originários das classes baixas que sobreviveram à eliminação, as desvantagens iniciais evoluíram, o passado social transformando-se em passivo escolar pelo jogo de mecanismos de substituição, tais como as orientações precoces e frequentemente mal informadas, as escolhas forçadas ou as repetências. Por exemplo, num grupo de estudantes da faculdade de letras, a proporção de estudantes de Latim no secundário varia de 41% para os filhos de operários e agricultores a 83% para os filhos de quadros superiores e membros de profissões liberais, o que é suficiente para mostrar a fortiori (tratando-se de literatos) a relação que existe entre origem social e os estudos clássicos, com todas as vantagens escolares que estes proporcionam. Pode-se reconhecer um outro indício da influência do meio familiar no fato de que a parcela de estudantes que diz ter seguido o conselho de suas família para a escolha de uma seção na primeira ou na segunda parte do bacharelado cresce ao mesmo tempo que se eleva a origem social, ainda que o papel do professor decresça paralelamente.

Observam-se diferenças análogas em relação ao ensino. Seja porque eles aderem mais fortemente à ideologia do dom, seja porque creem mais fortemente em seu próprio dom (ou nos dois juntos), os estudantes de origem nas classes altas, reconhecendo tão unanimemente quanto os outros a existência de técnicas de trabalho intelectual, testemunham um maior desdém àquelas que são tidas como incompatíveis com a imagem romântica da aventura intelectual, como a posse de um fichário ou de uma agenda. Não há modalidades sutis de vocação ou de condução dos estudos que não revelem o caráter gratuito do engajamento intelectual nos estudantes das classes altas. Enquanto, mais seguros de suas vocações ou de suas aptidões, estes exprimem seu ecletismo real ou pretendido e seu diletantismo mais ou menos frutuoso pela grande diversidade de seus interesses culturais, os outros revelam uma maior dependência em relação à universidade. Quando se pergunta aos estudantes de sociologia se prefeririam dedicar-se ao estudo de sua própria sociedade, dos países do terceiro mundo ou à etnologia, percebe-se que a escolha dos temas e dos terrenos “exóticos” torna-se mais frequente à medida que a origem social eleva-se. Da mesma maneira, se os estudantes mais favorecidos voltam-se  com mais naturalidade às ideias em moda (vendo, por exemplo, nos estudos  das “mitologias” o objeto por excelência da sociologia), não é apenas porque a experiência protegida que conheceram até então os predispõe a aspirações que obedecem ao princípio do prazer mais que ao princípio da realidade e porque o exotismo intelectual e a boa vontade formal representam o meio simbólico, isto é, ostentatório e sem consequências, de liquidar uma experiência burguesa exprimindo-a? Para que esses mecanismos intelectuais possam se formar, não é preciso que sejam dadas – e durante muito tempo – as condições econômicas e sociais da liberdade e da gratuidade das escolhas?

Se o diletantismo na condução dos estudos é particularmente o feitio dos estudantes de origem burguesa, é porque, mais seguros quanto à manutenção de um lugar, mesmo fictício, ao menos numa disciplina de refúgio, eles podem, sem risco maior, manifestar um desinteresse que supõe precisamente uma maior segurança: eles leem menos as obras diretamente ligadas a seu programa e as obras menos escolares; eles são sempre os mais numerosos a fazer estudos múltiplos e a valorizar disciplinas distanciadas ou de faculdades diferentes; eles são sempre os mais inclinados a se julgar com indulgência, e essa maior complacência, que a estatística dos resultados escolares denuncia, assegura-lhes em muitas situações, a oral por exemplo, uma vantagem considerável. (pp. 30-32)

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