Em Defesa do Iluminismo

Tradução própria de resenha do livro de Tzvetan Todorov.

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Sob quais bases intelectuais e morais queremos construir a nossa vida comum? Nós não receberemos qualquer ajuda dos políticos (já que eles estão obcecados com as negociações políticas e gananciosos por conquistar ou manter o poder), de figuras midiáticas (para quem, “celebridades” grosseiras e a repulsa à qualquer forma de vida inteligente é o que importa), nem de “líderes” religiosos (o que proferem, que varia do vazio ao incitamento do assassinato em massa de quem não siga as crenças irracionais, fatalmente semelhantes, não inspira confiança), então não há muito com o que se alegrar. É claro que estamos nos distanciando das dimensões humanistas do Iluminismo europeu e de qualquer estrutura conceitual que forneça as bases para o que dizemos e fazemos. Estamos perdendo nossas sensibilidades e nossas conexões com o passado. Essas são razões suficientes para acolher este pequeno livro (publicado pela primeira vez em francês em 2006, e traduzido aqui por Gila Walker).

O Iluminismo não se originou no século XVIII. Ele deve muito à Antiguidade, à Idade Média, ao Renascimento e às grandes mudanças dos séculos XVI, XVII e XVIII. Estava, portanto, bastante preocupado com a absorção, com a conciliação de pontos de vista que estavam em conflito e com uma redescoberta e reinterpretação da Antiguidade Clássica, com o acolhimento do que era antigo e do que era moderno e, também, com abstrações conceituais (como aquelas que constituíam as idéias de igualdade e liberdade).

E o que foi mais importante, o Iluminismo compilou uma grande quantidade de conhecimento, e tentou aplicá-la ao mundo real daquele tempo. Incentivou a plena liberdade para estudar, perguntar, criticar e desafiar os dogmas: ele tentou libertar a humanidade da tirania da autoridade de caráter religioso. Em outras palavras, ele removeu as algemas impostas pela crença no sobrenatural, rejeitando a submissão da sociedade a preceitos cuja legitimidade foi supostamente concedida por deuses, ancestrais, ou ambos. Fundamental para isso, claro, foi a separação da religião e do Estado. A razão deveria predominar, assim como o conhecimento, abrindo as portas para o desenvolvimento das ciências. Foram promovidas todas as formas de educação, desde a escola primária até as academias científicas, e novas descobertas se tornaram disponíveis, não apenas para um grupo seleto, mas também para o público em geral.

Onde estão, poderíamos nos perguntar, os Lockes, Humes e Voltaires (para citar três gigantes do Esclarecimento) do século XXI, já que estamos regredindo à escuridão e ao caos? Onde, de fato! O Iluminismo aconteceu em um momento de debate vociferante, não de consenso. Ainda hoje, é óbvio que a mídia de massa, controlada por muitas poucas pessoas, e empregando bajuladores incapazes, ao que parece, de pensar originalmente, está promovendo a sopa insossa de opinião pronta, inimiga do debate racional. Os velhos adversários do Iluminismo (autoridade arbitrária, fanatismo e obscurantismo) estão todos soltos, afinal, no primeiro Estado criado sob a égide de princípios iluministas, os Estados Unidos da América, por volta de 39% da população, acha que a Bíblia foi diretamente ditada por Deus e deve ser interpretada literalmente.

Todas as sociedades ocidentais contemporâneas estão atualmente sob o ataque do fundamentalismo, e não só o de característica cristã: o fato de que os políticos e os meios de comunicação têm medo de sequer mencionar isso, apesar das evidências de que seja um perigo óbvio e muito real, diz muito sobre a covardia, estupidez e sobre a traição da sociedade contemporânea aos ideais do Iluminismo, aos quais muito devemos. Talvez isso ocorra porque a humanidade permanece em estado de menoridade, como uma criança que não pode avançar sem ser obrigado a fazê-lo. Milton esperava que um dia a humanidade, pelo livre exercício da razão, acabaria por se tornar adulta (nota do tradutor:mesma posição encontrada em Kant, em “O que é o esclarecimento?”). O oposto parece estar ocorrendo, e isto é, ou deveria ser, uma fonte de enorme preocupação para todas as pessoas pensantes. Tzvetan Todorov argumenta que devemos resgatar o pensamento iluminista de uma forma que preserve o legado do passado, mas submetendo-o a um exame crítico: pelo caminho que as coisas estão tomando, este resenhador diria, não há possibilidade de isso acontecer agora, dada a mediocridade intelectual, receio da verdade e covardia moral, em todo lugar óbvia, naqueles com posições de poder.

Este livro instigante deve ser lido por todos que se preocupam com o futuro: é importante e oportuno, embora provavelmente seja tarde demais para ter qualquer efeito sobre o declínio óbvio e aterrorizante e à capitulação à loucura irracional. Dessacralização radical, perda de sentido e o culto universal ao relativismo causaram um dano imenso: são distorções dos princípios iluministas e são frutos de falta de cuidado, hipocrisia e covardia.

Estamos nos tornando mais inteligentes ao longo das gerações? O desconhecido efeito Flynn.

Professor Flynn (1934-)

James Flynn (1934-)

De uma matéria do G1:

A cada geração, o QI medido em praticamente todo o mundo tem aumentado entre 15 e 20 pontos, ou o equivalente a um quinto da inteligência “total” de uma pessoa mediana (que “vale” 100 pontos).

O fenômeno bizarro tem nome: efeito Flynn. A expressão homenageia o pesquisador americano naturalizado neozelandês James Flynn, da Universidade de Otago, que estuda a variação da inteligência há décadas e foi o primeiro a dar de cara com o aumento progressivo de QI, nos anos 1980.

Esta pode ter sido uma das maiores descobertas das Ciências Sociais nas últimas décadas. A média dos testes de QI (o raciocínio lógico, que é apenas um dos vários tipos de “inteligência” que existem, fique bem claro) tem que ser reajustada ao longo dos anos (por que a média tende a crescer e ultrapassar 100). Em testes comparáveis feitos nos EUA e Europa Ocidental, pessoas com QI de 100 em 1910 teriam um QI de cerca 70 hoje (no limite do “retardo mental”), pessoas com QI de 80 naquela época (ainda na faixa normal hoje em dia), teriam QI de 50 atualmente (seriam consideradas como tendo “retardo mental” moderado). Evolução biológica não foi, não houve qualquer “seleção natural” entre seres humanos desde 1910. E mais interessante disso é que cerca de 90% do ganho não foi verificado nas questões com palavras, conhecimento “geral”, matemática, etc. o que seria óbvio efeito do aumento do estoque de conhecimento da sociedade, que obviamente cresceu diretamente com a maior escolarização, mas nas questões de raciocínio puro, lógico e espacial.

Pessoas de sociedades tradicionais, segundo entrevistas realizadas por psicólogos soviéticos, não conseguem responder de forma lógica uma questão do tipo “Se em Nova Zembla há sempre neve e onde sempre há neve os ursos são todos brancos, de que cor é um urso de Nova Zembla?” Elas respondem algo como “eu nunca vi um urso que não fosse negro” ou “nunca conheci alguém que foi em Nova Zembla”. O mundo imediato não abre espaço para abstrações, o que não significa que essas pessoas estejam erradas, claro. A resposta segue a lógica daquele contexto. Essa mudança só pode ser explicada pelo efeito do mundo simbólico extremamente complexo das sociedades modernas, onde há estímulos visuais auditivos, sensoriais, etc. constantes que ajudam a estimular nosso raciocínio lógico.

E isso não significa apenas “inteligência instrumental”, pesquisas também mostram que um QI maior também está correlacionado com um desenvolvimento sócio-moral maior, nos termos de Kohlberg (obviamente há exceções, psicopatas podem estar num nível de desenvolvimento sócio-moral pré-convencional e ter QI elevadíssimo, por exemplo). Então, é provável que a humanidade está caminhando ao mesmo tempo para um desenvolvimento sócio-moral maior (pena que até onde sei não existem estudos comparando as distribuições da escala de desenvolvimento moral ao longo das décadas).

Ao mesmo tempo que o QI é, em parte, determinado pela genética, o efeito da sociedade é incrível (algo semelhante ocorre com a altura, temos, em média, a altura de nossos pais, mas ao longo das décadas, a medida que a afluência do ambiente cresce, todos ficamos mais altos). Se mantivermos o caminho correto dos últimos 200 anos, que futuro maravilhoso não aguarda a humanidade?

Para saber mais (com legenda em português)  

Sobre amor romântico e etnocentrismo


De A Ralé Brasileira¹.

Certamente, a conclusão de que determinadas condições objetivas de existência que moldam a vida de meninos e meninas desde as experiências da primeira infância tornam a vivência do amor romântico algo bastante improvável para certo tipo de pessoas é uma ideia que atinge em cheio a mais cara de nossas ilusões sobre a vida: a crença de que, apesar de toda a miséria e de toda a vulnerabilidade, as chances de se encontrar o amor não se fecham para o destino dos que vivem em um universo de privação. Acreditar que o destino de classe não fecha as portas do amor constitui sem dúvida o pilar da visão enganosa que a classe média tem da “ralé estrutural”, com o efeito auto-indulgente de saber que a privação de outras formas de realização na vida não é capaz de retirar a realização na intimidade de um lar, nas relações de um casal entre si e com seus filhos. Afinal, se o amor é mesmo a versão moderna e secularizada da busca pela salvação, oferecendo o que outrora prometia a religião com o reconhecimento pleno das singularidades de uma pessoa, o que há de mal na pobreza se ela não nos impede de amar? Se os pobres podem amar como todo mundo, a desigualdade em nada constitui empecilho para uma vida realizada.

Infelizmente, essa visão politicamente correta, destinada a esconder o sofrimento que a privação produz nas dimensões mais íntimas da vida, ecoa livremente na análise sociológica. Sérgio Costa é um que não escapa disso ao criticar a israelense Eva Illouz por achar que ela é etnocêntrica ao concluir que pessoas mais escolarizadas podem viver o amor romântico de modo mais autônomo e melhor. Para Illouz (lido em Sérgio Costa), como certamente seria para Max Weber, a reflexividade define se uma relação erótica é apenas o resultado chapado dos padrões vendidos pelo cinema e pelas telenovelas ou se ela é a vivência nutrida pela assimilação “consciente e autoirônica” desses padrões por parte dos amantes. Illouz acredita que a autonomia da esfera erótica depende diretamente dessa capacidade que os amantes têm de ressignificar, em alguma medida, os seus próprios rituais de erotismo; capacidade que para ela tem a ver com o repertório de “capital cultural” para exprimir e formular os próprios sentimentos. Nesse sentido, as pessoas mais desprovidas de “capital cultural” tendem a assimilar de modo muito menos autônomo e crítico os clichês da indústria cultural, ficando reféns de um erotismo pastiche que caminha ao bel sabor do que está na moda.

Essa análise da socióloga israelense parece confirmar exatamente o que tentamos mostrar ao longo deste texto: que a realização em outras esferas de valor, como o reconhecimento no trabalho e o afeto recebido pelos pais, é condição necessária para que o amor romântico surja de um erotismo relativamente liberto da preocupação “de vida ou morte” com o sexo, e assim capaz de patrocinar uma atitude reflexiva com o desejo. A qualificação de etnocentrismo feita por Sérgio Costa a Eva Illouz tenta negar a necessidade dessa diferenciação nas relações de reconhecimento social para a vivência do amor, buscando na “atribuição pelos atores de um sentido único, particular, mítico ao amor” o critério para definir a existência de uma esfera erótica autônoma e capaz de trazer realização aos amantes. Ora, não cabe definitivamente à sociologia dizer se as pessoas se amam ou não! Mas cabe a ela sem dúvida determinar as condições de possibilidade de qualquer experiência socialmente construída, como o amor, a amizade, a solidariedade de classe etc. O que faz Sérgio Costa ao eleger o “sentido atribuído pelos atores” como critério para definir sociologicamente o erotismo?

Nada além do que Bourdieu chama de “sociologia espontânea”, ou seja, aquela que toma como explicação do mundo social as ilusões que as pessoas formulam para legitimar sua posição no mundo, ajudando a esconder as misérias, dramas e angústias que essas pessoas precisam esquecer para continuarem vivas. Então, se uma menina como Dina, no auge de suas fantasias cujas razões analisamos aqui, diz estar vivendo um “verdadeiro amor”, o que deve fazer a sociologia? Tomar esse discurso como explicação, ou explicá-lo na relação com as condições de vida de Dina a fim de saber se essas condições permitem ou não o encontro provável com um “verdadeiro amor”? Ao falar em “múltiplas formas de amor”, numa expressão aparentemente tão generosa, Sérgio Costa demonstra na verdade todo o etnocentrismo que — ele sim e não Illouz! — reproduz na análise. Acreditar que a ausência de “grupos ou laços primários” capazes de prover o senso de solidariedade e identidade é uma possível fonte de formas “alternativas” de amor é a estratégia mais descarada de idealizar o oprimido, sugerindo uma disposição quase milagrosa de oferta generosa de amor quando as preocupações com a própria sobrevivência material e simbólica cercam a vida das pessoas. Sérgio Costa simplesmente esquece de considerar as condições de existência para a aprendizagem e a vivência do amor, presentes em sua própria posição de classe, projetando uma experiência própria de pessoas “despreocupadas” com sua sobrevivência material e simbólica na vida de pessoas efetivamente despossuídas da probabilidade de amar ao serem tomadas por esse tipo de preocupação. Quando ele pensa nesses “amores fáceis” ele ignora que todo tipo de amor, ao exigir uma “entrega de si”, pressupõe sempre uma “segurança de si” por parte dos amantes.

¹SILVA, Emanuelle; TORRES, Roberto; BERG, Tábata. A Miséria do Amor dos Pobres in SOUZA, Jessé (org.). A Ralé Brasileira, quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. pp. 168-170.

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O Beijo, 1889.

Natureza e cultura: os “genes da violência”

Nos últimos dias, a divulgação de uma pesquisa sobre a descoberta de genes que poderiam estar associados com a violência despertou uma série de temores, que iam desde a eugenia à volta das teorias lombrosianas, passando pelas acusações de darwinismo social. Minha ideia nesta breve postagem é mostrar que esses temores não deveriam se sustentar.

Fundamentos biológicos do comportamento violento

Não devemos pensar no comportamento violento como algo recente, fruto do capitalismo, do Estado ou da modernidade, muito menos como um padrão patológico. A evolução biológica selecionou não aqueles organismos mais violentos e fortes, como uma leitura superficial da teoria da evolução poderia levar a crer, mas sim aqueles que conseguiam equilibrar padrões de violência e de não violência. Como Dawkins nos mostra em O Gene Egoísta, animais fazem uso da violência para uma série de coisas vitais que proporcionam sua perpetuação, desde conseguir alimento, se defender para não virar alimento e disputar parceiros sexuais. Ocorre, porém, que ao contrário de pedras e da maioria das plantas, o animal é um ser que vai revidar à violência quando atacado. Assim, um organismo “programado” para atacar sob quaisquer circunstância, acabaria sendo eliminado pela seleção natural, visto que se colocaria em subsequentes situações de confronto. Dawkins cita uma série de experimentos com modelos computacionais – com o auxílio da teoria dos jogos – que descreviam diferentes organismos com diferentes estratégias em reação à violência, desde organismos pacifistas, que nunca atacavam  e sempre buscavam a cooperação (mesmo depois de atacados) a organismos beligerantes, que atacavam sob qualquer circunstância. Em praticamente todos os modelos, os organismos “vencedores” eram aqueles com estratégias do tipo “olho por olho, dente por dente”: nunca ataque primeiro, seja forte o suficiente para resistir a um primeiro ataque, ataque quem lhe atacou antes e coopere com quem cooperou com você na rodada anterior. No mundo real, isso pode significar que tanto organismos ingênuos (que sempre escolheriam a cooperação) e organismos beligerantes (que sempre atacariam) não conseguiram passar seus genes adiante e, portanto, foram eliminados pelo processo de seleção natural. Esse fluxo pode dar pistas sobre como o padrão de violência em animais pode ter evoluído até nossos ancestrais primatas e desvendar as “causas profundas” das propensões à violência que fariam parte do genoma de todos os seres humanos.

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Embora pouco ou nada saibamos sobre nossos ancestrais primatas dos quais evoluímos, sabemos bastante sobre nosso primo que evoluiu do mesmo ancestral, o Chimpanzé Comum. Ao contrário do que se imaginava em décadas anteriores, que os chimpanzés eram macacos pacíficos e vegetarianos, hoje sabemos que eles vivem em grupos hierarquizados, que entram em conflito interno e externo, que incursões ao território de grupos rivais são comuns, assim como espancamentos, assassinatos, estupros e até mesmo canibalismo. O “chimpancídio” parece atingir taxas altíssimas. Claro, há uma teoria alternativa sobre o comportamento de nossos ancestrais com base em outro macaco, que é tão próximo geneticamente de nós quanto os chimpanzés comuns, os chimpanzés bonobos. Franz de Wall, famoso primatologista, acredita que nosso ancestral poderia ter características mais próximas de um bonobo, chimpanzés pacíficos, sem distinções de poder entre machos e fêmea, que nunca fazem incursões violentas contra outros grupos (grupos que podem integrar-se pacificamente) e que resolvem seus conflitos à base de sexo, muito sexo. Bem, acontece que Bonobos parecem ter se separado do tronco comum que mais tarde deu origem a humanos e chimpanzés um pouco antes dos últimos. Então, pelo que se sabe hoje, é mais provável que nossos ancestrais primatas tinham um comportamento mais próximo ao dos chimpanzés-comuns do que ao de bonobos. Aliás, hoje também se sabe que Bonobos não são inteiramente pacíficos, embora, certamente, sejam muito mais pacíficos do que os chimpanzés comuns.

Padrões de violência em sociedades tradicionais e pré-modernas

Reconstituição de Otzi, o homem de gelo do neolítico europeu.

Um fato interessante é que os poucos restos corporais bem preservados de seres humanos que viveram na pré-história contém, na sua maioria, marcas de violência. Foi assim com Otzi, que provavelmente foi assassinado em alguma incursão a uma tribo vizinha nos Alpes ou do homem de Kennewick, um americano de cerca de 9 mil anos cujo ossos parecem indicar uma vida de violência. Afora os registros que a pré-história nos deixou na forma de ossos e múmias, textos de sociedades que viveram na idade dos metais, como as histórias gregas da Ilíada e da Odisseia, do período homérico, e a bíblia hebraica nos revelam um mundo de indizível violência. Verdadeiros genocídios, saques, estupros em massa e escravização eram parte do cotidiano. Para ilustrar isso, cabe uma passagem da Bíblia, vista como fonte de moralidade por muitos cristãos ainda hoje (embora muitos vejam o antigo testamento apenas de forma alegórica e busquem seus padrões morais no incrivelmente mais pacífico novo testamento):

Sob as ordens de Deus, o exército de Moisés derrota os midianitas. Eles matam todos os homens, mas levam presos as mulheres e crianças. Quando Moisés vê os prisioneiros, ele diz furiosamente: “Deixastes viver todas as mulheres?… matai todo varão entre as crianças; e matai toda mulher que conheceu algum homem… Porém todas as crianças fêmeas que não conheceram algum homem… deixai viver para vós.”  [Nm 31:1-54]

Notem com que naturalidade eram tratados o assassinato, o estupro e o saque nessa passagem!

Mais ou menos por essa época, surgiu uma nova tecnologia inteiramente social que iniciou a primeira grande pacificação relativa da história humana. Hoje se sabe que povos tribais promovem (e promoveram) a guerra e a violência em níveis sem qualquer comparação com as sociedades modernas e mesmo com as mais violentas sociedades com Estado. A criação dessa tecnologia foi deduzida por Hobbes, desde sua poltrona na Inglaterra do Século XVII, e seu nome é Leviatã. Essas primeiras entidades estatais foram eficazes em diminuir – e muito – a probabilidade de as pessoas morrerem vítimas da violência – seja a violência interna, via assassinatos, seja a violência externa, via guerras e razias.

Apesar de existir uma série de estudos que relatam povos tribais que praticamente desconhecem a violência, na verdade, se mostrou que esses trabalhos eram, em grande parte, etnografias mal feitas. Margaret Mead fala dos pacíficos arapesh, que praticamente desconheceriam a violência, na Nova Guiné, bem como dos tchambuli, também da Nova Guiné, que teriam uma cultura de sexos invertidos segundo nossos padrões, com mulheres dominantes e agressivas e homens dóceis e pacíficos. Na verdade, Mead não menciona o fato de que para obter o direito de usar uma maquiagem que Mead considera feminina, os homens, segundo o costume, precisavam, antes, matar um inimigo de alguma tribo vizinha. Segundo parece, o suposto pacifismo que Mead encontrou entre os homens dessa tribo naquele momento foi causado por um Leviatã local: a Pax Australiana imposta pelo governo colonial da Austrália e sua proibição das guerras tribais nas áreas sob seu controle. Bem, e apesar da opressão colonial, as pessoas pareciam gostar dessa Pax Australiana: “agora um homem pode levantar pela manhã para urinar sem ter medo de ser alvejado por um inimigo de tocaia”, disse um papua. Outro exemplo de tribo “pacífica” seria os semai, da Malásia. Apesar de serem relativamente pouco violentos em comparação com outros povos tribais, quando antropólogos ficaram bastante tempo entre eles e fizeram as contas na ponta do lápis chegaram a uma taxa de assassinatos de 30 por 100 mil habitantes, uma taxa alta, comparável a de países modernos onde a violência é considerada uma epidemia, como o Brasil, com seus 27 homicídios por 100 mil habitantes.

Embora os primeiros leviatãs tenham resolvido em parte um dos problemas, criaram uma série de outros problemas. Os estados foram, durante quase toda sua existência, cletocracias teocráticas absolutistas que mais criavam problemas do que os resolviam, garantindo às suas elites uma boa vida às custas da miséria do resto da população. Nesses tempos, você só teria algum direito se tivesse nascido no lugar certo. Foi necessário esperar até o século XVII ou XVIII para que surgissem as primeiras formas de governo não autocráticas, as primeiras democracias liberais (embora ainda tíbias e falhas, como qualquer versão 1.0 de uma nova tecnologia). Com seu sistema de divisão de poderes, de constituição absoluta, de direitos individuais e pesos e contrapesos ao abuso de poder, ela conseguiu  neutralizar a maior parte dos efeitos colaterais do Leviatã primitivo, mantendo – ou até ampliando – a pacificação. Vamos agora ao principal fator de pacificação interna nas sociedades ocidentais.

O processo de civilização. 

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Luis XVI, século XVIII

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São Luís, século XII

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De Gaulle, século XX.

Quando nos anos 70 as estatísticas históricas sobre os homicídios ficaram disponíveis, todos ficaram chocados, pois um senso comum conservador parecia acreditar que o mundo moderno era muito mais violento que o mundo tradicional. Na verdade, a Europa medieval tinha taxas de homicídio da ordem de 45 mortes por 100 mil habitantes, contra cerca de 1 por 100 mil no século XX.

Uma das maiores descobertas da sociologia até hoje foi a mudança “psicológica” que ocorreu no mundo ocidental nos últimos mil anos. Um grande sociólogo judeu, que fugiu da Alemanha nos anos 30, inferiu uma teoria que chamou de “processo civilizador” analisando dados qualitativos (estatísticas históricas não estavam disponíveis na época). Uma das principais fontes foram manuais de etiqueta do século XII ao século XVIII. No final da idade média, por exemplo, Erasmo de Roterdã escreveu um manual de etiqueta destinado aos seus leitores letrados. O tipo de dica era: não comprimente alguém defecando, não urine na escada, não cuspa no prato comum de sopa, etc. Por algum motivo, entre o século XVI e XVIII as coisas mudaram totalmente: os manuais de etiqueta da época eram fundamentalmente semelhantes aos que temos hoje. O tipo de “dica” dada a pessoas letradas no século XV era semelhante às que damos às crianças de 3 anos de idade. Se era necessário dar esse tipo de dica do que não fazer, significa que as pessoas estavam fazendo essas coisas. As pessoas medievais não controlavam suas emoções – e uma delas era o comportamento violento. Segundo Elias, dois gatilhos foram fundamentais para ativar as capacidades de autocontrole entre os ocidentais.

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Os catalisadores que desencadearam o fenômeno foram: 1) um verdadeiro Leviatã centralizou a colcha de retalhos dos feudos europeus: o estado foi se tornando um monopolizador da violência. A europa ocidental estava dividida em cerca de 5000 unidades políticas no século XII, a maioria pequenos feudos, umas 1000 no século XVI, cerca de 100 na época de Napoleão e umas 30 no auge da Guerra fria. 2) o comércio e o nascente capitalismo. O comércio tornava as pessoas mais interdependentes umas das outras. Essa interdependência aumentava a empatia entre as pessoas. A mentalidade medieval via a guerra como uma forma de atingir riquezas, mas a guerra é sempre um jogo de soma zero ou soma negativa, o comércio, na maioria das vezes, é um jogo de soma positiva.

Essa mudança influenciou toda a sensibilidade humana em relação à violência. As pessoas – exceto militares – deixaram de ostentar armas. Mesmo os chefes de estado, absolutistas, encarnação do Leviatã, passam a ostentar uma imagem menos violenta. O Rei Luis IX foi santificado e ostentava sua espada, mas era muito menos poderoso do que Luis XVI, onde a espada é um detalhe cerimonial. De Gaulle (ou Churchill, Roosevelt e mesmo Hitler), em plena guerra mundial, não apareciam armados. Hoje seria impensável pensar um chefe de estado de uma democracia pousando armado para fotos.

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Burguês medieval com sua faca, que era, ao mesmo tempo, arma e utensílio de mesa.

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Faca rombuda usada à mesa em nossos dias.

Todos os tabus que temos em relação à faca são outro claro reflexo disso: não se deve cortar batata com a faca, não se deve levar comida à boca com a faca, não se deve usar a faca para ajeitar comida no garfo. A faca de cozinha, do século XVII em diante tornou-se rombuda (na idade média, as pessoas comiam com a mesma faca que levavam à cinta – que era uma arma também). Todos os tabus e restrições em relação à faca servem para nos fazer esquecer que ela é uma arma. Os chineses, que também passaram pelo seu processo civilizador, levaram isso a uma consequência ainda mais extrema: facas foram totalmente abolidas da mesa, elas mantém-se relegadas à cozinha. Muitos chineses da elite do país no início do século XX se horrorizavam com os ocidentais, “bárbaros que comem com espadas”.

Uma visão complexa: para além da dicotomia entre determinismo biológico e construtivismo social

É difícil falarmos que vivemos na época mais pacífica da história após o século das duas guerras mundiais e do Holocausto. O cérebro, porém, nos prega uma peça chamada “miopia histórica”: superestimamos os eventos próximos e subestimamos os antigos. Esse efeito é visível em qualquer livro didático de história: a proporção de linhas dedicadas a cada século aumenta em relação direta com a proximidade temporal conosco. Assim, se há 5 linhas sobre o século XXVI AEC, há 60 para o século XIII e 300 para o século XVIII. Como nos lembra Atílio Boron, os críticos – de direita e de esquerda – da Modernidade e do Iluminismo esquecem que essas tragédias aconteceram NA modernidade, mas não foram CAUSADAS pela modernidade, como tanto vociferam os críticos do Iluminismo, segundo os quais essas catástrofes se devem a termos aberto a caixa de pandora e provado do fruto da árvore do conhecimento. Pinker, em Os Anjos Bons de Nossa Natureza (onde também defende a tese segundo a qual vivemos em tempos incrivelmente pacíficos) nos mostra que a Catástrofe da Segunda Guerra foi apenas o NONO evento com maior número proporcional de mortos da história conhecida. Grande parte dos morticínios anteriores foi causada por cavaleiros das estepes munidos de arco-e-flechas. Não é necessária grande tecnologia para causar democídios. Da mesma forma, não faltam genocídios como o Holocausto ao longo da história: a destruição de Cartago pelos romanos, as Cruzadas e o aniquilamento dos cátaros pelos exércitos franceses, dentre muitos outros.

Se até o século XIX, a classe alta matava tanto ou mais do que a classe baixa (cerca de 5% dos aristocratas ingleses morriam vítimas da violência no começo do século XIX, um padrão altíssimo sob qualquer critério, enquanto na sociedade inglesa em geral a taxa de homicídios por ano já havia recuado para menos de 10 em 100 mil), hoje, ao que tudo indica, a violência é um problema principalmente das classes mais miseráveis em muitos países. Longe de haver evidência genética para tal, parece que a explicação é muito mais social do que qualquer outra: são nesses extratos da sociedade onde o processo civilizador ainda não penetrou. Há, em muitos lugares, entre os extratos mais marginalizados, uma cultura da violência – desde o lar – que lembra os padrões medievais que Elias nos descreve em suas obras. Da mesma forma, o Leviatã não chegou lá: ao contrário de pessoas de classe média ou de estratos integrados das classes populares, em classes marginalizadas não se recorre à polícia ou à justiça para a resolução de disputas (o que leva a uma justiça da “honra” e do “olho por olho”), nem o Estado se interessa por suas questões.

Levando isso em conta, também não vemos guerras dentro do Ocidente há 70 anos (o próprio Brasil é um país único: tem 10 vizinhos e não briga com nenhum deles há 140 anos), onde se desfruta de uma paz kantiana. Do mesmo modo, apesar de genocídios, guerras civis e entre países continuarem a ocorrer no mundo em desenvolvimento, mesmo elas estão diminuindo na esteira do fim da Guerra Fria. Democracias se espalham pelo mundo e, pela primeira vez, mais da metade da população mundial vive sob seu julgo. Tudo isso sem nenhuma evolução biológica recente. Apesar dos fundamentos biológicos para a violência, nossas instituições puramente sociais – fruto do gênio e cooperação coletiva humanos – foram capazes de ativar nossos anjos bons e reduzir a violência física em vários graus de magnitude. Hoje, a maioria das pessoas do mundo pode viver sem o temor de ter sua casa saqueada por hordas invasoras, nem de se tornar escravo de alguém, muito menos ser vítima de uma briga de facas na mesa de jantar – origem remota de nossos tabus em relação a essa peça na esteira do processo civilizador. Esse talvez tenha sido um dos eventos mais importantes da história humana.

A fossilização da “cultura” numa redoma: “Halloween vs. Dia do Saci”

0,,15812928-EX,00Sempre que o dia 31 de Outubro se aproxima, iniciam-se as velhas discussões puxadas pelos “nacionalistas” sobre o quanto a importação de tradições americanas, como o Halloween é maléfica para a “cultura nacional”, o quanto se trata de “imperialismo cultural” e tudo o mais. Muitos propõem a substituição do “evento americano” pelo Dia do Saci. É interessante valorizar aspectos da “nossa” cultura, mas não faz sentido o assunto ser tratado nesses termos de “ou isso… ou aquilo”. Diferentemente do que muitos intelectuais pregam, a cultura não é um dado absoluto, um animal em extinção que deve ser preservado numa redoma, por um valor intrínseco nele mesmo. A cultura nada mais é do que o resultado de nossas interações com outras pessoas e com o ambiente natural e social ao longo dos milênios de existência humana. Para aclarar esse ponto, trago abaixo uma citação do antropólogo Ralph Linton ao comentar hábitos que são vistos como tipicamente americanos. Nós brasileiros podemos reconhecer muitas dessas práticas, pois compartilhamos com os americanos, quase ocidentais que somos, vários desses artefatos e instituições provenientes seja do oriente próximo, do mundo clássico ou de outros lugares.

Cidadão 100% Norte-Americano

O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tomou doméstica na índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo: ou de seda; cujo emprego foi descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso de mocassins que foram inventados pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos e entra no banheiro, cujos aparelhos são uma mistura de invenções europeias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia, e lava-se com sabão, que foi inventado pelos antigos gauleses; faz a barba, que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do Antigo Egito.

Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira de tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no Antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra no pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.

De caminho para o breakfast pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é o inventado na Itália medieval, a colher vem de um original romano. Começa seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar seu leite são originários do Oriente Próximo, ao passo ideia o açúcar foi feito pela primeira vez na índia. Depois das frutas e do café, vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou uma planta doméstica na Ásia Menor. Rega-os com xarope de maple, inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de uma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.

Acabando de comer nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta original do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarros provenientes do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for um bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser 100% americano.

LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à Antropologia, p. 331-332. Extraído do livro Introdução à Sociologia de Pérsio Santos de Oliveira. São Paulo, Editora Ática, 1989.