A fossilização da “cultura” numa redoma: “Halloween vs. Dia do Saci”

0,,15812928-EX,00Sempre que o dia 31 de Outubro se aproxima, iniciam-se as velhas discussões puxadas pelos “nacionalistas” sobre o quanto a importação de tradições americanas, como o Halloween é maléfica para a “cultura nacional”, o quanto se trata de “imperialismo cultural” e tudo o mais. Muitos propõem a substituição do “evento americano” pelo Dia do Saci. É interessante valorizar aspectos da “nossa” cultura, mas não faz sentido o assunto ser tratado nesses termos de “ou isso… ou aquilo”. Diferentemente do que muitos intelectuais pregam, a cultura não é um dado absoluto, um animal em extinção que deve ser preservado numa redoma, por um valor intrínseco nele mesmo. A cultura nada mais é do que o resultado de nossas interações com outras pessoas e com o ambiente natural e social ao longo dos milênios de existência humana. Para aclarar esse ponto, trago abaixo uma citação do antropólogo Ralph Linton ao comentar hábitos que são vistos como tipicamente americanos. Nós brasileiros podemos reconhecer muitas dessas práticas, pois compartilhamos com os americanos, quase ocidentais que somos, vários desses artefatos e instituições provenientes seja do oriente próximo, do mundo clássico ou de outros lugares.

Cidadão 100% Norte-Americano

O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tomou doméstica na índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo: ou de seda; cujo emprego foi descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso de mocassins que foram inventados pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos e entra no banheiro, cujos aparelhos são uma mistura de invenções europeias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia, e lava-se com sabão, que foi inventado pelos antigos gauleses; faz a barba, que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do Antigo Egito.

Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira de tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no Antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra no pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.

De caminho para o breakfast pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é o inventado na Itália medieval, a colher vem de um original romano. Começa seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar seu leite são originários do Oriente Próximo, ao passo ideia o açúcar foi feito pela primeira vez na índia. Depois das frutas e do café, vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou uma planta doméstica na Ásia Menor. Rega-os com xarope de maple, inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de uma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.

Acabando de comer nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta original do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarros provenientes do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for um bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser 100% americano.

LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à Antropologia, p. 331-332. Extraído do livro Introdução à Sociologia de Pérsio Santos de Oliveira. São Paulo, Editora Ática, 1989.

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