Sobre a descivilização em meados do século XX

(texto originalmente publicado no Facebook em Agosto de 2014).

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Finalmente, depois de anos desde que ouvi falar pela primeira vez no filme, criei coragem de assistir “Irreversível”. Basicamente, o filme trata, em cenas retrospectivas, do desenrolar de uma vingança de um homem, acompanhado de seu amigo, contra um “cafetão” que havia estuprado e deixado em coma sua namorada quando ela voltava de uma festa. Como é sabido, a cena de estupro contida nesse filme se tornou notável pelo seu realismo e violência (como se um estupro pudesse não ser violento). Esta cena, invariavelmente, causa horror e repugnância em quem assiste ao filme, homens ou mulheres. 

O filme é do começo do século XXI e contrasta com outro filme, que também conta com uma cena de estupro e violência famosa no cinema: “Laranja Mecânica”, da década de 70. Ao contrário da cena precedente, porém, esta é quase vista como “sensual”, “glamourizada”, protagonizada por um personagem (curiosamente chamado “Alex”, o mesmo nome da mulher estuprada em “Irreversível”) entendido quase como um “rebelde romântico”, um autêntico ser humano em estado natural, um super homem nietzscheano em luta contra o verniz artificial da Civilização e do Contrato Social. Esta cena, ao contrário de causar horror, foi aplaudida pela intelectualidade da época. “Ele expõe nosso desejo de satisfação sexual instantânea (…), nossa necessidade de aventura e excitação”, disse um crítico, “é desse lampejo da verdadeira natureza humana que deriva o poder da história”, afirmou Kubrick, o diretor do filme (hoje nos perguntamos como um homem genial como ele podia ter um senso moral tão compartimentado).

Afinal, o que mudou tanto em trinta anos em nossas sensibilidades? Bem, em sociedades tradicionais o estupro é criminalizado, mas sempre como uma ofensa ao pai, irmãos ou marido das ofendidas, nunca pelo seu próprio ponto de vista. A Bíblia legitima o estupro de hebreus contra estrangeiras e oferece a possibilidade de o estuprador comprar a estuprada de sua família como uma forma de “reparação de danos” (aos homens da família da estuprada, obviamente). Desse ponto de vista a reação à cena do estupro na década de 70 parece ser uma continuidade do padrão milenar e apenas recentemente as sensibilidades mudaram, não? Não. Na verdade o que aconteceu dos anos 60 a 80 foi uma inflexão de uma tendência que vinha ocorrendo no ocidente desde a Baixa Idade Média, o Processo Civilizador.

O Processo Civilizador foi uma progressiva internalização de normas de decoro, auto-controle e relativa não violência pelos ocidentais ao longo de 500 anos, do final da Idade Média aos anos 1950, engatilhado por, principalmente, dois fatores: o surgimento de “Leviatãs”, ou estados modernos, que aos poucos se tornaram democráticos e liberais, mas monopolizaram a violência física legítima e pacificaram internamente os territórios que submetiam e a Divisão do Trabalho Social, ensejada pelo desenvolvimento do capitalismo, que aumentou a interdependência mútua entre as pessoas. De fato, as taxas de violência, dentre elas muito provavelmente o estupro, nos países europeus, declinaram 20 vezes do final da idade média até os anos 60. Dos anos 60 em diante, porém, a violência voltou a ser glamourizada como “rebelião contra o sistema”, qualquer autoridade passou a ser mal vista e valentões, brigões e encrenqueiros passaram a ser encarados como rebeldes contra a opressão. O comércio gentil, que propiciou a divisão do trabalho social, foi visto como essencialmente mal, algo que deveria ser substituído pelas utopias do comunismo e do anarquismo. Minados, parcialmente, os pilares do processo civilizador, o estupro romantizado em “Laranja Mecânica” foi um dos resultados. Outro indicador do colapso do processo civilizador foi a duplicação nas taxas de assassinato nesse período (de grande prosperidade econômica, diga-se de passagem, além de níveis de igualdade que não mais seriam atingidos nos EUA e em muitos países da Europa, o que contradiz a explicação economicista da violência).

O que aconteceu, porém, para que uma cena como a de “Irreversível” fosse possível e todo o pavor visceral que sentimos quando assistimos a ela? Houve uma recivilização nos anos 90. O fenômeno é super complexo, mas um dos resultados foi o declínio das taxas de violência, tanto na Europa quanto nos EUA, para os mesmos níveis dos anos 50, apogeu do Processo Civilizador. Em primeiro lugar as pessoas se cansaram de violência e passaram a promover “ofensivas civilizatórias”. As brigas de gangue e latrocínios a sangue frio na luz do dia não podiam mais ser satisfatoriamente explicados como efeitos naturais da pobreza e da desigualdade. A violência foi desromantizada e a inclinação da balança de poder para o lado das mulheres favoreceu que seu ponto de vista (certamente, mesmo nos anos de descivilização as mulheres não devem ter se sentido bem com a cena de “Laranja Mecânica”) passou a ser ouvido. A rebelião contra qualquer forma de autoridade – mesmo a de um estado democrático de direito – perdeu o gás e passou a ser vista mais como uma tendência juvenil e não mais como legítima filosofia política de músicos iluminados que tem muito a dizer sobre como deve ser uma boa sociedade. A liberdade de trocas, fundamento do comércio gentil, entre os seres humanos – nas suas diversas possibilidades e pelo menos no mundo ocidental – não tem mais rivais sérios depois do colapso de ideologias contra-iluministas como o marxismo e o fascismo. Assim, antes de ser um colapso do Iluminismo e da Civilização, um retorno ao padrão tradicional, as décadas em que o estupro podia ser visto como “libertação” foram antes uma pequena flutuação do que uma reversão do provavelmente mais importante – e pouco conhecido – fenômeno do último milênio, que possibilitou (sei que virão críticas à afirmação, mas posso prová-la) que uma proporção inédita de seres humanos vivesse livre das formas extremas de violência.