“Não sei, sou de humanas”: cursos universitários e grupos ideológicos

Um dos grandes motivos de discussões acaloradas no Facebook, juntamente com as discussões entre “coxinhas” e “petralhas”, “biscoito” e “bolacha” é a briga entre “humanas” (a categoria nativa parece incluir apenas o “núcleo duro” das humanas, além de algumas sociais aplicadas, como jornalismo e, por vezes, direito) e “exatas” (qualquer curso que tenha cálculo, mesmo que seja, epistemologicamente, tão de “humanas”, quanto os cursos dos CFHs da vida, como administração e economia). Na minha universidade, a UFRGS, um dos momentos do ano onde essas rivalidades extrapolam o Facebook e chegam aos corredores é a anual eleição do diretório central dos estudantes (DCE). Há cerca de 10 anos, o DCE da UFRGS é disputado por grupos ligados ao direitista PP e ao esquerdista PSOL, sendo que, na maioria dos anos, o PSOL vence, embora tenham ocorrido algumas vitórias da chapa do PP, como em 2009 e 2013. Cabe mencionar também que as eleições são marcadas por acontecimentos dignos da República Velha, como corredores poloneses em torno das urnas, militantes armados com bastões, roubos de urnas e de atas, dentre outras incivilidades. Não por acaso, as eleições também são chamadas de “gincanas” eleitorais e a imensa maioria dos estudantes, por vezes, quase 90%, não participa das votações, dado o baixo nível geral das campanhas.

Bem, neste ano concorreram 5 chapas, sendo elas ligadas aos seguintes grupos:

Chapa 1: Partido Comunista Revolucionário (PCR) e PCB.

Chapa 2: Coletivo Barricadas (uma dissidência do PSOL)

Chapa 3: PT e PCdoB

Chapa 4: PP (o deputado estadual gaúcho, Marcel Van Hatten, fez carreira política no movimento estudantil da UFRGS)

Chapa 5: PSOL e PSTU (situação).

A chapa 5 foi reeleita e os resultados podem ser consultados aqui.

Não foi para falar de eleição de DCE, porém, que eu escrevo esta postagem, mas sim para, a partir dos resultados das diferentes chapas nas urnas de cada curso, tentar entender o perfil ideológico da universidade. O tipo de dado resultante dessa eleição, separado por urna de curso, se presta a um tipo de análise chamada “analise fatorial”. A ideia da análise fatorial é reduzir um conjunto de variáveis quantitativas (os votos de cada chapa por urna, por exemplo) em um conjunto menor de variáveis (chamados de “fatores”), seja como um fim em si mesmo (por exemplo, como faremos aqui, entendendo como elas se agrupam) ou então para facilitar seu uso em uma regressão (neste caso, ao invés de termos, digamos, umas 30 variáveis, teríamos só 2 ou 3, o que torna a análise mais fácil e intuitiva).

Essa análise requer uma série de passos e pressupostos que não irei desenvolver aqui, onde me focarei em entender os resultados. Inicialmente, faremos uma análise fatorial utilizando as chapas como variáveis e as urnas como casos, temos as 6 variáveis (as 5 chapas e os votos em branco) agrupados da seguinte forma:

fatores chapas

Votos nulos foram excluídos por questões técnicas (comunalidade)

Notem que um dos fatores criados foi o que eu chamei de “extrema-esquerda”, agrupando as três chapas de extrema (PSOL, Barricadas e PCB), enquanto outro agrupa as chapas do PP e do PT, além dos votos em branco. Achei interessante este resultado, pois demonstra que os estudantes que votam em chapas do PP também podem votar em chapas do PT, e vice-versa, apesar das distâncias ideológicas entre os dois partidos foram da universidade. Por isso resolvi chamar esse fator de “centrão”, para identificar aqueles estudantes interessados em propostas mais “pragmáticas” e menos na “luta” defendida pelas chapas de extrema-esquerda.

De forma gráfica, esses fatores podem ser visualizados da seguinte maneira: chapas1

A primeira coisa que chama a atenção é a enorme proximidade entre as chapas de extrema esquerda, muito maior do que a proximidade entre as chapas do fator “centrão”. Isso indica que elas disputam exatamente os mesmos votos. Inclusive, a chapa do PT está a cerca de um terço do caminho entre as chapas do PP e as chapas de extrema-esquerda. A inclusão dos votos em branco neste fator parece indicar que os estudantes que tendem a votar em branco são também aqueles menos interessados em votar nas eleições do DCE, menos interessados na “luta” e mais em “propostas pragmáticas”, o que parece ser o caso da maioria dos eleitores das chapas do PP e do PT, em menor grau.

Após verificarmos como as chapas se agrupam, vamos entender como isso acontece com os cursos. Neste caso, tomando as chapas como casos e os cursos / urnas como variáveis, chegamos a três fatores:

fatores urnas

Urnas excluídas por questões estatísticas: farmácia (comunalidade), FABICO, Prédio do cálculo/prédio novo do IFCH, Direito e Administração (“estrutura complexa”).

Neste caso, os fatores representaram três agrupamentos ideológicos de cursos:

  1. Cursos que tendem a votar na extrema-esquerda: anexo da saúde (psicologia, comunicação), educação física, fisioterapia e dança, teatro, biologia marinha, matemática, enfermagem, odontologia, física, letras, química, artes e educação, além das “true humanas” (filosofia, ciências sociais e história), claro.
  2. Cursos que tendem a votar na chapa do PP (centrão 1): informática e engenharias.
  3. Cursos que tendem a votar na chapa do PT (centrão 2): primeiros semestres dos cursos da saúde, economia, veterinária e arquitetura.

De forma gráfica, podemos visualizar esses agrupamentos ideológicos da seguinte forma: urnas1

Pelo menos tomando por base esses dados, parece que a separação “ideológica” entre os cursos não segue exatamente a divisão humanas / exatas (mesmo se entendermos essa dicotomia em sua categoria nativa de cursos sem e com cálculo), mas é mais complexa. Apesar de os cursos onde a chapa do PP vença sejam de exatas, a extrema esquerda também vence em vários cursos dessa área, como química e matemática, além de vencer em quase todos os cursos da saúde.

Existe a “solidão da mulher negra”? Uma aproximação a partir da PESB.

Um dos assuntos que mais tem me chamado a atenção nas redes sociais nos últimos meses são os constantes ataques a perfis de homens negros “bem sucedidos” que namoram mulheres brancas (ou mesmo orientais) e são acusados de “palmitagem” (um termo de certa forma racista, por chamar mulheres brancas de “palmito”, que indicaria que homens negros bem sucedidos procuram mulheres brancas para “exibi-las” como um “troféu” resultante de sua acensão social). Além da acusação de “palmitagem”, esses homens negros também são acusados de “causarem a solidão da mulher negra”, ao preferirem ficar com brancas, uma acusação que tem sido recorrente entre a militância do movimento negro feminino virtual. Exemplos podem ser encontrados aqui, aqui e aqui.

Bem, isso passou a motivar minha curiosidade de verificar se este suposto fenômeno pode ser capturado pela via estatística, através de grandes levantamentos de dados. Uma alternativa óbvia seria a PNAD, que é uma amostra bem ampla da população brasileira. Quem já trabalhou com ela, sabe o quanto ela pode ser útil, mas o quanto é trabalhoso extrair os microdados, necessários para esse tipo de análise, pois eles são disponibilizados pelo IBGE em formato .txt e rodá-los em um software estatístico como R, SPSS, ou mesmo Excel, envolve bastante trabalho. Assim, eu preferi escolher um banco com o qual já tenho bastante afinidade, o da Pesquisa Social Brasileira de 2002, que possui uma amostra bastante significativa da população brasileira de então. Esses dados foram utilizados para embasar, entre outras, obras como A Cabeça do Brasileiro.

Bem, inicialmente, eu construí uma variável sobre a “solidão”, dicotomizando o estado civil dos indivíduos maiores de 18 anos (a pesquisa entrevistou apenas maiores de idade), colocando solteiros, divorciados, desquitados e separados de um lado e casados, “amancebados”, em união estável e viúvos (acredito que faça mais sentido colocá-los aqui, pois, teoricamente eles já foram casados e seu estado atual de “solidão” não depende de uma separação, mas da contingência da morte) de outro. Cruzando essa variável sobre a solidão com a cor dos entrevistados e seu gênero temos o seguinte resultado.

solidão

N = 2335, Significância do quiquadrado – homens: 0,895 – mulheres: 0,034.

Uma primeira associação que chama a atenção é que mulheres de todas as raças tendem a ser mais “solitárias” do que os homens do ponto de vista “conjugal”. Se as diferenças entre homens brancos e negros não são significativas, mulheres negras tendem a ser mais de 10 pontos percentuais “solitárias” do que mulheres brancas e pardas.

Relações causais, porém, não podem ser derivadas de simples correlações, mulheres negras (“pretas” na classificação oficial) podem ser mais “solitárias” do que mulheres brancas e pardas por uma série de outras variáveis ocultas (escolaridade, renda, idade, local de moradia, etc.) que estão superestimando o efeito da raça (por exemplo, ao cruzarmos o tamanho da circunferência da barriga entre homens com o grau de queda de seus cabelos, provavelmente, teremos uma associação significativa, o que pode levar pessoas apressadas a concluírem que a gordura está causando a calvície, ou vice-versa, quando, na verdade, o aumento do peso e a queda dos cabelos estão, ambas, sendo causadas por uma terceira variável, oculta, não incluída na associação, a idade).

Uma das formas de lidar com isso, é através da análise de regressão, neste caso, a regressão logística, que é bastante usado na área da saúde para entender o que pode influenciar o aparecimento de uma doença, por exemplo, “comer tomate diminui em tantos % a chance de ter câncer de próstata”, a diferença é que usei como variável dependente (aquela que queremos explicar), ao invés do aparecimento de uma doença, a “solidão”. Como é um modelo multivariado, é possível controlar os efeitos das variáveis já incluídas na equação (por exemplo, negras podem ser mais solitárias não pelo fato de serem negras, mas pelo fato de serem pobres). Como variáveis independentes (que buscam explicar o efeito da variável dependente), utilizei gênero, cor ou raça, idade, renda mensal individual, região do país de residência e anos de escolaridade. O resultado está resumido abaixo:

solidão

Efeitos estatisticamente significativos em vermelho. Categorias de referência nas variáveis politômicas categóricas: mais de 20 SM (renda mensal individual), norte (região do país), branco (raça). Significância Wald: 0,000. Pseudo R² (Negelkerke): 0,178.

Além de incluir os efeitos isolados da raça e do sexo, criei uma variável sobre a interação de ser mulher e negra, pressupondo que a opressão de ser mulher negra não se reduz às opressões de gênero e de raça, mas tem algum componente a mais, relacionado ao fato de ser mulher E negra ao mesmo tempo.

Nota-se, porém, que o efeito da cor ou raça não é estatisticamente significativo em nenhum dos casos. O que parece melhor explicar a “solidão” são outras variáveis:

  1. ser mulher: mulheres, independentemente da cor, tendem a ser mais “solitárias” do que homens. O aumento da chance é de 27%.
  2. Morar no sudeste: moradores do sudeste têm 67% mais chances de “sofrerem de solidão” do que moradores do norte. Eu imagino que tal fato está relacionado com a vida urbana mais desenvolvida do Sudeste, onde não pesam tantas pressões sobre os indivíduos para a constituição de uma família como no interior do Brasil.
  3. A idade: cada ano a mais de vida diminui as chances de solidão em cerca de 4%. Isso é meio óbvio, a cada ano que passa, aumentam as chances de encontrar a “metade da laranja”.
  4. A escolaridade: cada ano a mais de estudo aumenta em cerca de 10% as chances de ser “solitário”. Isso pode ser resultado do fato de que, com o aumento da escolaridade, obrigações acadêmicas e profissionais podem levar à postergação dos anseios em se constituir família.
  5. Apesar de a renda não se mostrar significativa do ponto de vista estatístico (com exceção da categoria “até 1 SM”), uma relação quase exponencial existe entre a renda individual e as “chances de solidão” (com exceção da categoria “sem renda”, onde o efeito não é tão acentuado). Quanto menor a renda, maiores as chances de “sofrer de solidão”, o que indica que homens e mulheres com alta renda tendem a ser mais valorizados no mercado matrimonial, independentemente de sua cor ou raça.

Ou seja, mesmo com uma amostra robusta, não foi possível estabelecer nenhuma relação de causalidade entre cor ou raça e a “solidão” no “mercado matrimonial”. Outras variáveis, que não a cor ou raça, parecem explicar muito melhor os casos de “solidão”, ao contrário do que pregam algumas das blogueiras citadas no começo desta postagem.