Esta vai ser uma postagem uma pouco diferente das anteriores e um pouco fora de timing também, mas apenas consegui sentar para escrevê-la agora. Desde o dia da votação do impeachment de Dilma Roussef, eu estava com vontade de escrever sobre o assunto, dada a quantidade de pessoas que se chocou com o baixo nível dos deputados federais brasileiros e de seus discursos. Não quero aqui ser mais um a reclamar do que foi dito, apenas tenho um pouco de vontade de extrair um pouco de ordem do caos de discursos e de palavras
Os discursos
Afinal, qual foi o tom predominante dos discursos? O que os deputados realmente disseram? Pessoas mais liberais – no sentido de “não conservadoras” – e à esquerda reclamaram da enorme quantidade de termos religiosos (Deus ou mesmo “paz em Jerusalém”) e de menções personalistas, à família ou aos netos. Por outro lado, direitistas se incomodaram com as (poucas) citações a personalidades esquerdistas, como Marighela ou Che Guevara.
Com o software de análise qualitativa NVivo, eu pude tratar a transcrição dos discursos dos deputados e tentar encontrar algumas tendências.
Abaixo, nós podemos encontrar os termos que mais foram utilizados pelos deputados.

Termos mais utilizados pelo conjunto dos deputados.
Ao contrário do que a impressão sugeriria, não foram os termos que causaram maior ressonância que estiveram entre os mais citados pelos conjuntos dos deputados – com exceção da família. Termos como Brasil, país, povo, estado, brasileiro ou brasileiros se sobressaíram. O interessante, porém, é comparar o que disseram os deputados de acordo com seus votos.
Enquanto os votos pelo sim tenderam a destacar termos como Brasil, família, filhos ou corrupção, os deputados contrários ao impeachment tenderam a mencionar termos como democracia, golpe, trabalhadores e constituição, além de mencionarem o presidente supostamente corrupto da Câmara e ferrenho opositor de Dilma, Eduardo Cunha. Não obstante, há bastante sobreposição, como no termo “povo”, bastante utilizado pelos dois grupos. Abaixo, uma quantificação mais exata dos termos utilizados, sua frequência, bem como o percentual da fala dos deputados por eles ocupado.

Termos mais citados pelos deputados contrários e favoráveis ao Impeachment.
Deus é apenas o 13º termo mais utilizado pelos parlamentares oposicionistas à Dilma e, embora também seja utilizado pelos então governistas, não aparece entre os 20 principais termos por estes utilizados. Entre os antigos governistas, também se destacam menções à Temer, o maior beneficiado do processo, além das menções à Cunha. Desta primeira análise, podemos concluir que os votos pelo sim, em geral partindo de deputados centristas e direitistas, tendem a se focar em aspectos tradicionais (a pátria brasileira, o estado ou cidade de origem, família, Deus e a religião, etc.) e emocionais (esperança). Apesar de a corrupção ser citada, poucos deputados citaram as assim chamadas pedaladas fiscais, o motivo formal do impeachment. Por sua vez, os votos dos deputados contrários ao impeachment tenderam a enfatizar aspectos legais (crime – alegando que não houve nenhum – constituição, golpe e democracia).
Os partidos:
Uma análise interessante é a de cluster, que busca agrupar os partidos a partir das falas de seus deputados. Partidos cujos deputados tiveram falas parecidas estão mais próximos, enquanto aqueles que tiveram falas pouco parecida estão mais distantes. Abaixo o resultado em duas visualizações possíveis, à esquerda, em duas dimensões e à direita, em dendograma.
A primeira coisa que notamos é que há dois grandes agrupamentos: o menor, em defesa do governo, é composto por PT, PCdoB e PDT (círculo vermelho) e com o PSOL em sua proximidade. Por outro lado, o agrupamento de oposição foi composto pela maioria dos partidos (DEM, PSDB, PMDB, PSC, SD, PV, PSB e outros) e com alguns partidos “nanicos” menores, como PHS, PROS e PTN, ao seu redor. Por sua vez, uma série de partidos teve deputados com discursos diferentes dos dois grandes clusters, como Rede, PSL, PMB e outros.
Dentro do cluster de oposição ao governo, é interessante notar alguns agrupamentos menores, cujo discurso foi, de certa forma, correlacionado com seu histórico partidário. Temos um agrupamento da oposição clássica (DEM e PSDB), outro com o assim chamado “centrão” (com PMDB, PSD, PR, PRB e PTB), um cluster composto pelos populistas do PSC e do Solidariedade e um agrupamento improvável composto por PP e PSB. PV e PPS, que são os partidos oposicionistas ao antigo governo com um histórico mais esquerdista, estão um pouco afastados.
Abaixo temos algumas nuvens de palavras mais utilizadas pelos deputados de alguns partidos selecionados: o maior partido de então situação (PT) e o maior de oposição (PSDB). Também trago, para fins de comparação, os discursos dos deputados dos partidos que podem ser considerados os mais extremistas, o esquerdista PSOL e o direitista PSC.
A inferência de Lula:
Chamou-me a atenção uma frase que Lula teria dito assistindo à votação e publicada em alguns veículos da grande imprensa brasileira.
“Esses que começam falando em Deus, família, mãezinha e paizinho… Pode ter certeza de que votam contra nós”
(Lula, ex-presidente, sobre a votação do impeachment de Dilma)
Na hora, eu imaginei que Lula tinha razão, o discurso dos deputados era um grande preditor do seu voto final pelo sim ou pelo não. Quando algumas palavras eram citadas, a chance de o deputado votar “sim” ou “não” parecia crescer bastante. Seria, porém, possível verificar até que ponto isso é verdade? Como o desfecho a ser explicado (o voto) era binário (as possibilidades que importavam eram sim ou não) seria possível aplicar a técnica sobre a qual já escrevi aqui em outro texto, a regressão logística.
Grosseiramente, ela permite que nós calculemos o impacto de algumas variáveis preditoras (aqui, no caso, ter dito ou não certas palavras) sobre as chances de um desfecho (ser favorável ao impeachment), ao mesmo tempo, que controla o efeito dessas variáveis preditoras entre si. Assim, escolhi três palavras que imaginei que aumentariam a chance de algum deputado votar pelo impeachment, ao mesmo tempo em que escolhi três delas que poderiam diminuir essa chance. Algo mais ou menos na linha da imagem abaixo.

Modelo causal discursivo. Em azul, palavras que presumo que aumentam as chances de um deputado votar “sim” pelo impeachment, em vermelho palavras que presumi diminuírem essas chances.
O resultado foi bastante interessante. Essas palavras podiam prever em até 56% as variações dos votos (um resultado bastante alto em ciências humanas. Em minha dissertação de mestrado, modelos bem mais sofisticados não chegaram a 30% de poder de predição). Abaixo o efeito, confirmando a “hipótese de Lula”.
Mencionar o termo “Brasil” aumentou em quase 300% a chance de um deputado votar favoravelmente ao impeachment de Dilma, enquanto mencionar o termo “família” fazia essa chance aumentar quase 200%. Por sua vez, mencionar termos como “golpe” ou “democracia”, quase zeravam as chances de alguém votar “sim” pelo impeachment, enquanto mencionar “constituição” as diminuía pela metade. Interessante que menções a “Deus” não foram estatisticamente significativas. Isso ocorreu porque, apesar de o termo ter sido mais utilizado pelos então oposicionistas, ele também foi utilizado por defensores de Dilma, como mostra a tabela abaixo.
Surpreende que, apesar das reclamações contra essas menções, que violariam o caráter laico do Estado Brasileiro, menos de 10% dos deputados citaram Deus. Dos deputados que votaram pelo impeachment, pouco mais de 11%, ao mesmo tempo em que pouco mais de 5% dos deputados favoráveis à permanência de Dilma o fizeram.
Certamente, cabem muitas outras análises e comparações (por região, por estado, por gênero, etc.), mas isso tornaria o artigo ainda mais longo. Portanto, ficamos por aqui.