A democracia dos antigos e a dos modernos

Originalmente publicado em Seguinte: em 26 de Abril de 2018

Entre os fins dos anos 1990 e o começo dos anos 2000, a democracia havia chegado ao seu auge. Pela primeira vez na história, a maioria da população mundial vivia sob regimes democráticos. Além dos lugares onde ela já fincara raízes desde o século XIX (especialmente nos EUA, nos países da Commonwealth britânica e em um que outro país da Europa, como a Suécia), as ditaduras de direita do sul da Europa (Grécia, Portugal e Espanha) e da América Latina (incluindo o Brasil) e de esquerda no Leste Europeu haviam sido substituídas por democracias mais ou menos bem-sucedidas. Segundo o Índice de Democracia da revista inglesa The Economist, 2006 foi o auge. Desde lá, porém, um fantasma ronda o mundo: ano a ano, países democráticos se tornam autoritários e mesmo aqueles com democracias consolidadas veem o sinal amarelo se acender.

Paradoxalmente, esses declínios democráticos recentes surgem do voto dos cidadãos e não de golpes militares ou revoluções. Países que eram modelos em suas regiões se tornam ditaduras após eleições de políticos populistas e/ou autoritários: nossa vizinha Venezuela foi um dos únicos países da região que não caíram sob ditaduras militares nos anos 60 e 70, hoje está um passo de degenerar em uma ditadura escancarada em meio ao caos social. A Turquia, que era um modelo de laicidade no mundo islâmico (desde uma revolução nacionalista nos anos 1920 ter derrubado o sultão otomano), hoje, tem um presidente que concentra cada vez mais poderes e flerta com a teocracia islâmica. Mesmo os países pioneiros na experiência democrática sofrem abalos: os EUA viram a eleição de um radical populista, enquanto na França, o partido semifascista de Marine Le Pen chegou a fazer mais de um terço dos votos.

O filósofo italiano Norberto Bobbio afirma que a democracia moderna (que ele e outros chamam de democracia-liberal) é o resultado da acomodação de duas tradições bastante distintas. Uma, a democracia no sentido antigo, uma ideia que vem desde a Atenas Clássica, busca distribuir o poder entre os cidadãos – dando ênfase à vontade da maioria. A outra é o liberalismo, uma ideia relativamente nova, consolidada no século XVIII, que visa garantir os direitos inalienáveis dos cidadãos e restringir o poder do Estado e dos governantes. Essas duas tradições teriam, finalmente, se encontrado no começo do século XX. Por isso, em uma sociedade democrática, o que conta não é apenas a vontade que a maioria expressa pelo voto, mas também as regras do jogo (que não podem ser mudadas de acordo com a vontade popular) e direitos que não podem ser retirados por plebiscitos. Assim, mesmo que a maioria dos brasileiros decida, por exemplo, que todos os homossexuais devem ser mortos, isso não é possível em um regime democrático, pois certos direitos dos cidadãos não podem ser retirados pelo voto de outros. Segundo Locke, filósofo inglês considerado o pai do liberalismo político, esses direitos não podem ser retirados nem pela própria vontade expressa do indivíduo. Ele elencou três: a vida, a propriedade e a liberdade. Assim, não há legitimidade em um povo que vota para referendar uma ditadura dentro dos marcos de uma democracia-liberal.

 

O que aconteceu com o mundo desde 2006

 

Com essas definições fica um pouco mais fácil de pensarmos o que aconteceu com o mundo desde 2006. Trump, Maduro e Erdogan (o presidente islamista turco), para não falar do russo Putin, chegaram ao poder pelo voto, em eleições mais ou menos justas. Em todos os lugares, prevaleceu a democracia, no seu sentido antigo, ou seja, a vontade da maioria. Trump tem feito bem menos estragos (por enquanto) do que Putin, Maduro, Erdogan e outros fizeram em seus países porque nos EUA ainda prevalece a outra tradição que forma a democracia moderna, o liberalismo limitador do poder da maioria.

Assim, os países democráticos que se tornam ditaduras ao eleger líderes autoritários, o fizeram por neles prevalecer o sentido antigo de democracia, ou seja, o importante é o que desejam os 50% mais 1 dos eleitores. Os EUA não se tornaram e, provavelmente, não se tornarão uma ditadura ao eleger Trump porque nesse país, como em alguns outros poucos, prevalece o sentido moderno da democracia-liberal: vontade da maioria mais restrições ao poder. Essas restrições partem de várias frentes: uma é o consenso social de que todas as pessoas têm certos direitos que não podem lhes serem tirados de forma alguma (os famigerados direitos humanos), outra são as instituições que dividem e balanceiam o poder: um legislativo atuante, um judiciário independente, uma imprensa plural e livre, etc. Em um país assim, ninguém pode concentrar tanto poder para impor sua vontade. Um dos redatores da Constituição Americana, James Madison, se expressou nos seguintes termos:

“Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo. Ao criar um governo que será administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: devemos, em primeiro lugar, capacitar o governo para controlar os governados; e, em seguida, obrigá-lo a controlar-se a si próprio.”

A fórmula de Madison visa que o governo controle a si mesmo a partir de um sistema de freios e contrapesos, inspirado na ideia de separação entre os poderes de outro filósofo, desta vez francês, Montesquieu. É uma fórmula que deu certo, pois os EUA mantêm a mesma constituição (e a democracia) desde 1788. O Brasil, desde a independência, teve 7 constituições. Na próxima coluna, debaterei as possibilidades de sobrevivência da democracia brasileira no caso da eleição de um candidato extremista ou autoritário nas eleições deste ano.

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