A causa de grande parte dos problemas políticos atuais é o liberalismo individualista pressupor que as pessoas são autossuficientes: devem buscar seus próprios valores e bastarem a si mesmas, sem necessidade de vínculos mais ou menos duradouros: é o mundo “líquido” do qual falava Bauman. Esse liberalismo individualista é compartilhado pela direita e pela esquerda, cabe lembrar.
Daí vem a ojeriza a cantar o hino ou mesmo a reverenciar a bandeira. São atitudes até justificadas, já que na maior parte do tempo o simbolismo nacional foi utilizado apenas para patriotadas e maniqueísmos chauvinistas.
Ora, acontece que as pessoas necessitam de identidades e significados. Provavelmente, isso deve ter a ver com alguma característica profunda da natureza humana ou a uma ontologia comum a todos nós. Não sei.
O fato é que quanto as pessoas deixam de buscar essa identidade em vínculos saudáveis, como a família, a comunidade local, as igrejas ou mesmo a comunidade política, a anomia prevalece e sobram as formas degeneradas de comunidade. Por isso, é tão comum vermos as pessoas usando coletivos identitaristas de militância como terapia, bem como a avidez com que elas se juntam a esses grupos quando entram numa universidade pública. Se a esquerda tem os coletivos como forma de suprir a necessidade de comunidade, a direita tem o suprematismo racial, os grupos de incels ou até a seita de um certo astrólogo.
Por isso, não há nada de necessariamente opressor ou chauvinista em cantar o hino nacional (ignorando o slogan ilegal que o comunicado do MEC trouxe consigo, que é o verdadeiro problema, ao contrário do que os apologistas do governo tem divulgado). O hino é um ritual, e a vida é feita de rituais. É um símbolo que, assim como os demais símbolos nacionais, nos lembra que fazemos parte de uma comunidade política de 200 milhões de pessoas, para as quais temos deveres e obrigações especiais. Lembra que compartilhamos de uma história e de instituições comuns. Como todo ritual, cantar o hino fortalece vínculos. É a virtude cívica, uma forma de identidade saudável. Se as identidades virtuosas não forem cultivadas, restam apenas as outras. Ao invés de um patriotismo republicano, resta o nacionalismo retórico e patrioteiro, tão em voga no Brasil dos últimos anos.