Sobre fernandodegoncalves

Fernando de Gonçalves, graduando em Ciências Sociais pela UFRGS, atualmente realizando intercâmbio acadêmico na Universidade dos Açores, Portugal.

Direita, esquerda e nazismo

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É difícil achar uma régua universal para definir o que é direta e o que é esquerda, mas é possível estabelecer alguns critérios, e nenhum associa esquerda ao nazismo.

Todo mundo sabe que os termos direita e esquerda surgiram no século XVIII, na esteira da revolução francesa. A primeira esquerda surgiu do pensamento iluminista e liberal clássico. Só bem depois surgiu uma esquerda muito mais vinculada ao marxismo do que ao liberalismo clássico, especialmente a manifestação continental do liberalismo.

O pensamento de direita não surgiu como um corpo de ideias próprias, mas especialmente como uma reação à esquerda nascente e à Revolução Francesa. Na Inglaterra, levou ao conservadorismo secular de Burke, no continente deu no conservadorismo tradicionalista de Maistre. Muito, mas muito tempo depois foi surgir uma “direita” não vinculada de alguma forma ao conservadorismo social, com os pensadores liberais econômicos do século XX.

Depois da esquerda liberal, tivemos a esquerda marxista, que, de certa forma, eclipsou a primeira. Das três fontes teóricas do marxismo, a economia política inglesa, o socialismo reformista e racionalista francês e a filosofia hegeliana, apenas esta última não pode, imediatamente, ser considerada parte do pensamento iluminista. Então, creio ser possível considerar o marxismo como um dos frutos do Iluminismo, o que mantém algo em comum com a sua precursora, a esquerda liberal.

O Fascismo, que poucas pessoas não consideram um movimento de direita, não deixa de ser um fruto do pensamento conservador continental, especialmente do tradicionalismo radical de Julius Evola. Isso o coloca como um movimento claramente anti-iluminista.

O Nazismo muito se inspirou no Fascismo, bem como na tradição romântica e antimoderna germânica (que apesar das negações revisionistas pós-modernas, tem em Nietzsche um dos maiores representantes) mas há muitas diferenças entre os dois movimentos. Para começar, Mussolini nunca gostou de Hitler, enquanto este idolatrava o primeiro. O Fascismo não foi totalitário, pois dividiu o poder com instituições tradicionais, especialmente a Monarquia e a Igreja. A nobreza e burguesia alemã, pelo contrário, ou foram incorporadas pelo Partido Nazista ou retiradas do poder. O Cristianismo, por seu turno, foi duramente perseguido por Hitler.

Além disso, Hitler adicionou ao Nazismo um componente eugenista e a biologia pseudocientífica que não havia encontrado espaço no fascismo. Por incrível que pareça, o eugenismo, no começo do século XX, estava muito mais ligado a movimentos progressistas, de “aprimoramento humano” do que a movimentos conservadores, afinal, para estes, interferir na natureza humana e nos desígnios divinos era “brincar de Deus”. Esta é, ao contrário dos argumentos mais utilizados (o nome do partido e o “tamanho do estado”) a característica mais “esquerdista” ou “progressista” do Nazismo.

O argumento do nome do partido é péssimo. Socialismo nos anos 1920 não tinha muito a ver com o que entendemos como socialismo hoje em dia. Desde o século XIX, socialista era todo aquele que se opunha ao individualismo moderno. Havia movimentos socialistas “de esquerda”, marxistas, e “de direita”, tradicionalistas.

Os partidos de esquerda, normalmente, ou eram “trabalhistas” (como o inglês) ou social-democratas (como o partido alemão ou mesmo o partido bolchevique, que tinha esse nome oficial), embora houvesse também “socialistas”, como o francês. Por associação, passamos a entender social-democracia como a ideologia reformista de esquerda do partido alemão com o mesmo nome, enquanto o partido russo, após a Revolução de 17, mudou o nome para Partido Comunista, para se diferenciar do balaio “socialista” e dos seus homônimos reformistas alemães. Graças a isso, o nome “comunismo” passou a ser associado com o sistema implantado na URSS.

O argumento do papel do Estado na economia é pior ainda. Economia liberalizada só passou a ser associada, irrevogavelmente, à direita após os governos de Thatcher e Reagan e as obras teóricas da Escola Austríaca e de Chicago na segunda metade do Século XX. No final do século XIX e começo do século XX, por exemplo, o livre comércio era uma bandeira encampada pelos movimentos trabalhistas de esquerda, pois garantia produtos baratos aos trabalhadores.

Enquanto isso, os conservadores, geralmente vinculados às classes agrárias, eram protecionistas. E, mais ainda, entre os anos 1930 e 1970, a intervenção estatal na economia passou a fazer parte de todo o espectro político mainstream. Quando pensamos nos partidos de direita tradicional dessa época, todos eles advogavam alguma espécie de intervencionismo econômico, seja o Partido Republicano dos EUA, os gaullistas franceses ou os conservadores britânicos. A própria Margaret Thatcher, ex-primeira ministra britânica, não venceu em 1979 com uma plataforma liberalizante, plataforma que ela só viria a desenvolver durante o governo.

É difícil achar uma régua universal para definir o que é direta e o que é esquerda, mas, acredito, que a definição de Bobbio, ancorada na igualdade, ainda é o melhor parâmetro. Segundo essa definição, a esquerda se caracterizou pela defesa de alguma forma de igualdade, enquanto a direita, de alguma forma reagiria a isso.

Parece-me uma régua bastante coerente, pois coloca o liberalismo clássico, com a sua defesa da igualdade jurídica, como a primeira esquerda, o que, de fato, foi. Da mesma forma, quando aplicamos essa régua ao nazismo, com a sua defesa da desigualdade inata e irredutível e mesmo extermínio dos “inferiores”, é impossível colocá-lo na esquerda.

Dizer que o Nazismo era de direita, ou, pelo menos, não era de esquerda, não significa dizer que ele não leva a um resultado muito semelhante ao da esquerda marxista: o Totalitarismo.

Talvez, as semelhanças entre nazismo e stalinismo ajudam a explicar a confusão classificatória. As origens teóricas e pressupostos de ambos os movimentos são totalmente opostos, mas o resultado acaba sendo bastante semelhante. Provavelmente, pois ambos os movimentos negam a humanidade de consideráveis parcelas do gênero humano (sejam burgueses ou judeus, kulaks ou pessoas com deficiência, “contrarrevolucionários” ou democratas).

 

Originalmente publicado em agosto de 2017 em http://ano-zero.com/o-que-e-direita-esquerda/

O Estado de Bem-Estar Social leva ao Desenvolvimento: por que os liberais austríacos estão errados?

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Existe um desses mantras da Internet, do qual ninguém sabe direito a origem, mas que é repetido como uma verdade autoevidente por quem descobre o liberalismo econômico rastaquera da escola austríaca: que os países ricos, que hoje mantêm estruturas de educação, saúde e seguridade social para a sua população, só passaram a fazê-lo depois que enriqueceram. Logo, um país como o Brasil primeiro teria, nessa visão, que enriquecer para, então, implantar esses serviços. Sim, emularam o Delfim Neto com a história do bolo.

Basta observar alguns dados históricos sobre a implantação dos sistemas de Welfare em alguns países que, hoje, são desenvolvidos para ter uma noção do quanto essa perspectiva não se sustenta.

1) Em 1883, a Alemanha bismarquiana criou o primeiro sistema de saúde pública e seguridade contra velhice e acidentes de trabalho para seus trabalhadores. Nesse momento, sua renda per capita, em valores atuais, era de apenas $ 3.290 anuais. É uma renda parecida à renda que um cambojano tem hoje em dia.

2) Em 1913, a Suécia adotou um sistema semelhante, a origem do lendário welfare nórdico, que “protege o cidadão da adversidade do berço ao túmulo”. Sua renda per capita, naquele ano, foi de meros $ 4.840. Hoje, é uma renda anual típica de um nicaraguense.

3) O famoso NHS, o serviço nacional de saúde pública do Reino Unido, foi criado em 1948. Teve tanto sucesso que se tornou um modelo para todo o mundo. Mesmo o pioneiro Reino Unido, o primeiro país a se industrializar, tinha uma renda per capita de $ 10.600 anuais. Ainda em valores corrigidos para os dias de hoje, seria uma renda equivalente à atual renda da Indonésia.

Sabem qual foi a renda per capita do Brasil em 2015 (último dado disponível)? Mais ou menos 15.400 dólares anuais. Ou seja, já somos bem mais ricos do que a Alemanha do final do século XIX, do que a Suécia do começo do século XX ou do que o Reino Unido da metade do século passado.

Por que essa perspectiva está errada? Amartya Sen, um economista liberal (da escola liberal de verdade, não dessa besteira de escola austríaca), mostra que serviços sociais, como a saúde e a educação, são serviços do tipo “trabalho intensivos“, ou seja, o maior gasto sempre será em capital humano, ou seja, salários dos professores, dos enfermeiros, etc. Esses salários seguem, ou deveriam seguir, os custos do trabalho da economia geral. Se a economia é pobre, esses salários também tendem a ser baixos, o que permite que mesmo países pobres consigam mantê-los.

Um caso exemplar disso é do estado indiano de Kerala, que está longe de ser um dos mais ricos daquele país, que ainda é, em si, bastante pobre. Desde os anos 1970, o governo local passou a investir pesado em saúde e educação. O resultado é que, hoje, apesar de o estado indiano ter uma renda per capita mais ou menos 2 vezes menor do que a de países bem mais ricos como o Brasil (se bem que superior à média do seu país), tem uma expectativa de vida de 77 anos (3 anos a mais do que a do Brasil e 8 anos a mais do que a média indiana) e uma taxa de alfabetização de 94% (3 pontos percentuais maior do que a do Brasil e 20 pontos percentuais acima da média da Índia).

 

 

Originalmente públicado em 29/05/2017 em:

http://www.revistalinguadetrapo.com.br/o-estado-de-bem-estar-leva-ao-desenvolvimento-por-que-os-liberais-austriacos-estao-errados/

 

A vitória de Macron e a Paz Perpétua

Alguns meses após o plebiscito que deu vitória à posição pela saída do Reino Unido da União Europeia e a vitória de Trump no Colégio Eleitoral das eleições americanas, a eleição francesa do último domingo parecia o terceiro e derradeiro confronto a opor duas visões políticas, econômicas e culturais diametralmente opostas. De um lado, defensores do liberalismo político, do universalismo ético e das fronteiras (mais ou menos) porosas a pessoas e mercadorias. De outro, defensores de posições mais ou menos autocráticas de governo, do comunitarismo nacionalista e da autarquia econômica.

Muitos acreditavam tratar-se de um embate entre o mainstream político e seus oponentes de extrema-direita. Eu defendo que a divisão clássica entre esquerda e direita explica pouco do que tem acontecido nos últimos anos. Trump, líder de um movimento associado à direita radical americana, foi apoiado por Putin, que também apoiou Le Pen, mas também líderes radicais de esquerda, como Maduro. Mélenchon, o candidato da extrema-esquerda francesa, defendia posições econômicas muito parecidas com as de Le Pen e o enfraquecimento da União Europeia. Sua recusa em se posicionar no segundo turno entre um liberal centrista e uma radical de direita (que, por sinal, já havia apoiado o partido de extrema esquerda que atualmente governa a Grécia) pode ser reveladora.

Assim, creio que a grande disputa que se desenrola diante de nós é melhor descrita como entre os defensores da sociedade aberta e seus inimigos, defensores de alguma forma de tribalismo (nacional, étnico, classista ou identitário).

Os defensores da sociedade aberta, normalmente, se aglomeram em posições no entorno do centro político – liberais autênticos, conservadores de boa estirpe, democratas cristãos, socialdemocratas, verdes, etc. – enquanto os seus inimigos tribalistas se distribuem de uma ponta à outra do espectro político. Podem ser encontrados na extrema direita (nacionalistas chauvinistas, racistas empedernidos, etc.) e na extrema esquerda, seja ela “clássica” (nacionalismo terceiro-mundista, tribalismo de classe trabalhadora) ou, muito mais comumente, pós-moderna (coletivos negros, movimentos LGBT, grupos feministas radicais, etc.) dos campi universitários.

Leia mais no artigo do Ano Zero.

Yvonne Maggie e o extremismo dos coletivos universitários

Universidade é uma das instituições mais exitosas da civilização ocidental. Surgida na Idade Média, atingiu sua forma atual no começo do século XIX, com o modelo humboldtiano alemão. Ela tem este nome – universidade – porque busca contemplar a universalidade do conhecimento humano: artes, teologia, filosofia, ciências formais e ciências empíricas.

O sucesso da Universidade deveu-se a um valor arduamente conquistado: a liberdade de expressão. Não mais a tradição, não mais a palavra da autoridade, não mais as convenções sociais. O saber, agora, respeitaria apenas três autoridades: a razão lógica, a experimentação empírica e a livre troca de ideias entre pares em uma esfera pública acadêmica.

(…)

Leia o restante do meu artigo no Ano Zero.

 

A PIOR DIREITA E ESQUERDA AMEAÇAM O MELHOR DO BRASIL

alegoria independência do Brasil

Alegoria da Independência do Brasil (Debret).

Às vezes, é importante ser conservador – na boa acepção – pois boas coisas são fáceis de destruir, mas muito difíceis de construir. Recentemente, me dei conta de que características que a cultura brasileira desenvolveu (características das quais devemos nos orgulhar, além de lutar para preservá-las) estão sendo ameaçadas pela importação de duas ideologias exógenas, de origem americana, sendo que uma delas nos ataca pela direita e a outra pela esquerda.

Essa característica é a nossa tolerância, uma tolerância de raízes profundas, embora não sem contradições – dado, por exemplo, que fomos o último país ocidental a abolir a escravidão. Ainda assim, poucos países tiveram a sorte de se desenvolver sobre instituições e cultura tão propícias a um sadio liberalismo político e social quanto nós.

1) O Brasil um dos primeiros países do mundo a descriminalizar relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O primeiro país a fazer isso foi a França, na esteira da revolução iluminista francesa. Alguns países europeus, conquistados por Napoleão, também o fizeram ao adotar seu Código Civil, no início do século XIX. O Brasil o fez em 1828, quando as antigas Ordenações Manuelinas foram substituídas pelo primeiro código criminal do Império. Para ter uma ideia, países vistos como a Meca das liberdades individuais só foram fazer o mesmo no final dos anos 60 (poucos anos antes, a Inglaterra levou ao suicídio um dos seus maiores heróis de guerra, Alan Turing, o inventor do computador, devido à castração química a que foi submetido por ser homossexual). Nos EUA, vários estados ainda mantinham essas leis em 2003, quando foram definitivamente revogadas pela Suprema Corte.

2) No século XIX, o Brasil era um dos países com o sistema eleitoral mais democrático do mundo, em termos de porcentagem da população com direito ao voto. Apesar de o voto ser censitário (só poderiam votar homens com uma renda estipulada), o limite era tão baixo que qualquer homem empregado poderia votar, mesmo analfabetos (que tiveram esse direito tolhido pouco antes da proclamação da República). Outro dos pioneiros da democracia, o Reino Unido, só liberalizou um pouco o direito de votação em 1868, e ainda assim, o manteve restrito a operários qualificados. Os EUA, até Martin Luther King, nos anos 60, ainda impediam negros de votar.

3) Mesmo que o Brasil tenha uma das menores participações de mulheres eleitas no mundo, ele foi um dos primeiros países do mundo a adotar o sufrágio feminino, bem como a possibilidade de eleição de mulheres, o que aconteceu já em 1932, bem antes do que países de reconhecida tradição liberal, como França ou Holanda.

4) Apesar de, como mencionado, termos sido o último país ocidental a abolir a escravidão (alguns países não-ocidentais, como a Mauritânia, só o fizeram em 1981), o Brasil é uma das únicas sociedades multirraciais do mundo, senão a única, a nunca ter tido segregação institucionalizada. Logo após a entrada no país das duas instituições fundamentais da Modernidade, ainda no Império, o Estado Racional-Legal e o Mercado Capitalista, muitos negros livres ascenderam socialmente muito depressa, tornando-se alguns dos maiores expoentes nacionais da política (José do Patrocínio, por exemplo), da indústria (como André Rebouças) ou das artes (incluindo um dos maiores escritores de todos os tempos, Machado de Assis). Já na República Velha, tivemos presidentes negros, como Nilo Peçanha. Na Segunda Guerra Mundial, o Brasil foi o ÚNICO país envolvido em combate cujas tropas não eram segregadas racialmente.

De onde veio esse nosso pendor liberal? Eu apostaria em certas características culturais do povo português, como a ausência de orgulho racial, tão discutida por Buarque de Holanda, além de uma herança de instituições iluministas pombalinas que atravessaram o oceano com a Família Real em 1808, mas isso é assunto para outro momento.

Bem, e quais seriam as ameaças exógenas a essa nossa tradição de tolerância democrática?

a) O pentecostalismo e neopentecostalismo pela direita, que ameaçam tanto a tolerância com a população LGBT quanto a liberdade feminina. Não é preciso relembrar os faniquitos do Malafaia (algo impensável mesmo entre os mais fanáticos membros da católica TFP) ou as recomendações de pastores influentes (em pleno 08 de Março!) de que mulheres apenas deveriam trabalhar fora “com permissão do marido”.

b) Pela esquerda, temos o racialismo identitário que tenta nos dividir em uma população bicolor, o que não tem o mínimo sentido aqui, mas pode fazer nos EUA. É uma importação, sem nenhuma tentativa de adaptação, de classificações exóticas a nós. Provavelmente, menos de 20% da população brasileira pode ser classificada, sem ambiguidade nenhuma, como negra ou branca. E os 80% restantes? Vão ser forçados a se adaptar a modelos gestados pelos rednecks americanos, só que agora com aura progressista? A polêmica do turbante lembra o “teste do papel pardo”, que existia nos EUA até meados do século XX, segundo o qual, uma pessoa só poderia entrar em dados eventos sociais se tivesse a pele mais clara do que o tal saco de papel pardo. Os testes lombrosianos que estão sendo aplicados para decidir quem merece a vaga em alguns concursos federais são uma advertência sobre o perigo de institucionalizar a segregação em um país que nunca o fez.

Publicado originalmente no Ano Zero.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: uma aproximação a partir da economia histórica

O sociólogo alemão Max Weber é reconhecido, dentre outros motivos, pela sua tese sobre as origens do capitalismo. De forma bastante simplificada, ele procurava se contrapor ao materialismo marxista – que acreditava que as estruturas simbólicas de uma sociedade (religião, leis, costumes, etc.) eram determinadas, em última instância, pelo tipo de sistema econômico reinante. Assim, o catolicismo medieval, na visão marxista, era um reflexo das relações econômicas feudais na Europa daquele período. Essa ideologia religiosa (parte da “superestrutura” no linguajar marxista), que coibia o enriquecimento e a cobrança de juros, já não era adequada à estrutura econômica capitalista que começou a tomar fôlego na Europa do século XV em diante . Assim, do ponto de vista marxista, o protestantismo surge como uma resposta da “superestrutura” às novas relações na estrutura econômica. Weber inverte essa tese. Para ele, as ideias possuíam uma autonomia relativa do mundo material da produção e podem, inclusive, determinar este. Para Weber, o verdadeiro capitalismo é fruto da reforma protestante, e não o contrário. Ao valorizar uma ética do trabalho, da frugalidade e do esforço individual, o protestantismo (em suas formas calvinistas principalmente) teria levado ao desenvolvimento econômico dos países norte-europeus (e dos Estados Unidos) que o adotaram.

Personen / Gelehrte / Deutschland / Weber, Max / Szenen

Max Weber, de chapéu em primeiro plano, 1917.

Enquanto navegava no Facebook, porém, acabei me deparando com uma postagem  do ex-astrólogo, católico tradicionalista e filósofo midiático brasileiro, Olavo de Carvalho, que contrapunha a tese weberiana:

Quando ouvirem algum idiota dizer que a Reforma Protestante criou a prosperidade moderna, saibam que estão falando com um analfabeto repetidor de propaganda. A prosperidade das nações protestantes, com a notável exceção da Holanda, só começou na segunda metade do século XIX e veio junto com a onda de ateísmo e cientificismo, não de protestantismo.

Olavo de Carvalho, 2017.

Bem, após alguma discussão sobre o assunto em minha linha do tempo, me dei conta de que nenhum dos debatedores buscava verificar empiricamente o que estavam dizendo. Um dos seguidores do filósofo argumentou sobre a autonomia do pensamento filosófico em relação às demais “disciplinas”, como a Sociologia e a Economia. Ocorre, porém, que Carvalho fez uma afirmação empírica, e afirmações empíricas devem ser avaliadas empiricamente.

Uma forma de avaliar empiricamente as teses de Weber e de Carvalho é através da economia histórica. Apesar de os dados econômicos anteriores ao século XX ainda serem frágeis, sua qualidade vem melhorando, e os dados relativos ao século XIX são relativamente confiáveis, ao menos para a Europa. Assim, busquei as bases de dados da plataforma Gapminder, uma das mais acessíveis plataformas de dados históricos. Nesta plataforma, é possível encontrar dados sobre renda per capita (ajustada pela inflação e pelo poder de compra) desde 1800 para vários países. Assim, utilizei este dado como um proxy  do desenvolvimento capitalista dos países selecionados.

Assim, selecionei os grandes e médios países da Europa Ocidental, e dividi-os em países predominantemente católicos e protestantes. Excluí Alemanha e Suíça, pois ambos os países contam com importantes populações católicas e protestantes e incluí os Estados Unidos, que é um país bastante importante na análise empírica weberiana. Feito isso, compilei os dados de renda per capita em 3 momentos, 1800 (portanto, imediatamente antes do verdadeiro início da Revolução Industrial), 1850 (quando esta Revolução estava em marcha em vários países da Europa e início do período citado por Carvalho) e 1900.

Os resultados com o ranqueamento dos países podem ser encontrado nas três tabelas abaixo:

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Renda per capita (dólares atuais em paridade do poder de compra) – países selecionados, século XIX. Fonte: Gapminder.

Em 1800 (primeira tabela), dos 6 países mais ricos, 4 são protestantes. De fato, o país mais rico era a Holanda, que Carvalho cita como uma exceção), seguido pelo Reino Unido (que já era bastante rico neste momento). A Itália ainda era bastante rica neste período (apesar disso, outros dados históricos mostram que a Itália estava economicamente estagnada desde o século XVI, sendo sua posição relativamente boa em 1800 resquícios de uma época onde sua renda per capita era o dobro da média europeia). O outro país católico entre os mais ricos, a Bélgica, possuía (e possui) uma grande minoria de origem holandesa, muitos deles protestantes. Dentre os países mais pobres, porém, todos são católicos, com exceção dos países nórdicos (que seguiram entre os mais pobres da Europa até o século XX). A pobreza relativas dos países nórdicos (Suécia, Noruega e Finlândia) pode não ter a ver com religião em si, mas com um ambiente natural bastante hostil, em uma região subpolar que só se tornou realmente produtiva a partir dos avanços tecnológicos do século XX. Em um momento em que a maior parte do PIB provinha do setor primário, não é de se estranhar essa renda baixa em uma região como a Escandinávia.

As tabelas seguintes mostram um padrão: o empobrecimento relativo do sul da Europa (Espanha, Itália e Portugal) e da Holanda, e o rápido enriquecimento do Reino Unido e dos Estados Unidos. Não obstante, países predominantemente católicos também cresceram bastante durante o século XIX, principalmente a França, Bélgica e Áustria. De qualquer forma, em todos os períodos, entre os 6 países mais ricos, 4 são protestantes. Entre os mais pobres, todos são católicos, com exceção dos países nórdicos.

Para fins de comparação, a renda per capita do Brasil, atualmente, é de cerca de 15 mil dólares em paridade do poder de compra. Em 1800, esse valor era de cerca de 1100 dólares, 1200 em 1850 e 1500 dólares na virada do século XX. Enquanto no começo do século XIX, podíamos nos comparar aos países mais pobres da Europa ocidental, ao final desse século, o Brasil já havia ficado para trás.

Abaixo, procuramos calcular a média de renda per capita para os países protestantes e católicos para o período. Em todos os anos, os países católicos eram relativamente mais pobres do que os protestantes. Apesar disso, tanto países católicos quanto protestantes aumentaram sua riqueza no período. Enquanto os países católicos cresceram, em média, 23% na primeira metade do século XIX, os protestantes cresceram 28%. Na segunda metade do século, o crescimento foi maior para católicos do que para protestantes: 80%, em média, para os países protestantes e 85% para os países católicos.

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Ou seja, a riqueza relativa dos países protestantes é anterior ao século XIX. Os dados parecem corroborar a tese weberiana. Não obstante, no período citado por Carvalho – a segunda metade do século XIX, países protestantes e católicos tiveram crescimento parecido. Se, no começo do século XX, os países protestantes eram mais ricos do que os países católicos, isso se deveu ao desenvolvimento do capitalismo anterior a 1850 nesses países.

Podemos, obviamente, testar algumas hipóteses. E se retirarmos a exceção – reconhecida por Carvalho – da Holanda, como os dados ficam?

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Excluindo Holanda.

De fato, quando excluímos a Holanda, os países protestantes e católicos passam a ter uma renda bastante parecida em 1800, embora a dos protestantes ainda seja quase 5% maior (o que ainda é significativo quando todos os países ainda eram relativamente pobres. Não obstante, a diferença entre países protestantes e católicos, neste caso, já se torna significativa na primeira metade do século XIX, e não na segunda, como postula Olavo.

Por outro lado, além de excluirmos a exceção holandesa, também podemos excluir os casos dos países nórdicos – cujo ambiente natural pouco propício num momento de ausência de tecnologia moderna – pode estar distorcendo os dados.

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Excluindo Holanda e países nórdicos (Suécia, Noruega e Finlândia)

Após eliminarmos os países mencionados do cálculo das médias, as diferenças no desenvolvimento econômico entre países católicos e protestantes passam a ser bastante significativas já no começo do século XIX. Neste momento, países protestantes já eram 36% mais ricos do que os países católicos, o que parece denotar um desenvolvimento capitalista já anterior ao século XIX – entre a Reforma e a Revolução Industrial – o que parece confirmar a tese weberiana e refutar a de Carvalho.

Por fim, retornando aos dados compilados por Maddison (2007), citados acima, podemos ter uma ideia sobre o desenvolvimento econômico por região, anteriormente ao século XIX. Selecionei alguns dos países já mencionados aqui, além de civilizações antigas da Ásia, como Índia e China, bem como o Brasil, para fins de comparação. Os valores são um pouco menores do que os da plataforma Gapminder, pois estão em dólares de 1990.

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O caso da Itália é bastante interessante. Após um empobrecimento após a queda do Império Romano (empobrecimento compartilhado por toda a Europa na alta Idade Média), teve um forte crescimento na baixa Idade Média – provavelmente graças ao comércio das repúblicas marítimas de Gênova e Veneza – ela se manteve estagnada desde o século XVI. Os demais países europeus também tiveram taxas mais modestas de crescimento na baixa Idade Média, enquanto Índia e China, as grandes civilizações do Oriente, se mantiveram praticamente estagnadas desde o período da Idade Média europeia. Após a Reforma (século XVI), notamos um padrão bastante distinto para países protestantes e católicos. Apesar de os países católicos (Portugal, Espanha e França) terem crescido durante a Idade Moderna, os países protestantes selecionados (Holanda, Reino Unido e, posteriormente, os EUA) tiveram taxas de crescimento muito superiores. Assim, quando a Revolução Industrial começa, no século XIX, os países protestantes já são bem mais ricos do que seus congêneres católicos. Esse desenvolvimento diferencial, iniciado com a Reforma, confirma, assim a tese de Max Weber.

Estudantes do ensino médio federal e o PISA. Sucesso explicado pela seletividade social?

Este vai ser um post breve que pretende dar uma movimentada no blog, já que lá se vão sete meses do último post. A recente divulgação do sucesso dos estudantes da rede federal de ensino básico no PISA, comparável a de países desenvolvidos gerou vários debates e considerações sobre a possibilidade de um ensino público de qualidade. Os estudantes federais superam, inclusive, aqueles da rede privada.

Recentemente, o governo federal esqueceu de divulgar os excelentes resultados dos estudantes dos Institutos Federais no ENEM, o que levou alguns a levantar motivos ideológicos para tal omissão.

Eu mesmo, quando divulguei os resultados do PISA, recebi várias críticas de que a rede federal, ao contrário das demais redes públicas, seria extremamente seletiva, o que privilegiaria estudantes com condições socioeconômicas favoráveis, o que, em parte explicaria o resultado.

Bem, são necessários estudos mais detalhados, pois a rede federal seleciona estudantes de diversas formas (provas, sorteio ou privilegia filhos de militares, nos casos dos colégios militares), mas os microdados da PNAD de 2015, que eu analisei hoje, mostram resultados bem interessantes.

Abaixo, eu comparo a origem familiar dos estudantes do ensino médio pela renda per capita domiciliar. Separo os estudantes por quintil de renda familiar. O quintil 1 seriam os 20% mais pobres da população, o quintil 2 os 20% seguintes e assim por diante, até o quintil 5 que representa os 20% de famílias mais ricas.

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Os dados nos mostram que a rede federal é muito mais equitativa do que a rede privada, em termos de acesso. As redes municipal e estadual tendem a concentrar os estudantes mais pobres. 30% dos estudantes da rede municipal de ensino médio vêm do estrato mais pobre da população, enquanto apenas 8% provêm do quintil mais rico. Na rede privada, quase metade vem do estrato mais rico e pouco mais de 3% apenas provêm das famílias mais pobres (provavelmente estudantes bolsistas, na maioria). A rede federal, por sua vez, parece representar bem a diversidade econômica das famílias brasileiras. Cerca de 19% dos estudantes vêm das famílias mais pobres, enquanto pouco mais de 21% vêm das mais ricas. Predominam, porém, estudantes do quarto quintil, aqueles que chamaríamos, grosso modo, de classe C, com 25% das matrículas.

A diferença fica mais evidente quando comparamos as medianas (a média é uma má medida de tendência central quando analisamos renda) da renda per capita familiar. Notamos que, apesar de os estudantes das escolas federais terem uma renda familiar um pouco maior do que os estudantes das demais redes públicas, eles são muito mais pobres, em média, do que os estudantes da rede privada.

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Quando comparamos a idade média dos estudantes das quatro redes notamos, por outro lado, que os estudantes da rede federal têm uma idade menor do que aqueles das outras redes públicas, o que denota menor repetência e atraso escolar. Por outro lado, a média de idade é levemente mais alta do que a da rede privada.

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São resultados preliminares, mas que parecem indicar que não é uma condição socioeconômica familiar privilegiada que explica o sucesso dos estudantes da rede federal em relação aos da rede privada. Pelo contrário, eles tendem a vir de de famílias, em média, economicamente bem mais pobres do que os alunos do ensino médio privado.

Uma análise do que disseram os deputados sobre o Impeachment

Esta vai ser uma postagem uma pouco diferente das anteriores e um pouco fora de timing também, mas apenas consegui sentar para escrevê-la agora. Desde o dia da votação do impeachment de Dilma Roussef, eu estava com vontade de escrever sobre o assunto, dada a quantidade de pessoas que se chocou com o baixo nível dos deputados federais brasileiros e de seus discursos. Não quero aqui ser mais um a reclamar do que foi dito, apenas tenho um pouco de vontade de extrair um pouco de ordem do caos de discursos e de palavras

Os discursos

Afinal, qual foi o tom predominante dos discursos? O que os deputados realmente disseram? Pessoas mais liberais – no sentido de “não conservadoras” – e à esquerda reclamaram da enorme quantidade de termos religiosos (Deus ou mesmo “paz em Jerusalém”) e de menções personalistas, à família ou aos netos. Por outro lado, direitistas se incomodaram com as (poucas) citações a personalidades esquerdistas, como Marighela ou Che Guevara.

Com o software de análise qualitativa NVivo, eu pude tratar a transcrição dos discursos dos deputados e tentar encontrar algumas tendências.

Abaixo, nós podemos encontrar os termos que mais foram utilizados pelos deputados.

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Termos mais utilizados pelo conjunto dos deputados. 

Ao contrário do que a impressão sugeriria, não foram os termos que causaram maior ressonância que estiveram entre os mais citados pelos conjuntos dos deputados – com exceção da família. Termos como Brasil, país, povo, estado, brasileiro ou brasileiros se sobressaíram. O interessante, porém, é comparar o que disseram os deputados de acordo com seus votos.

Enquanto os votos pelo sim tenderam a destacar termos como Brasil, família, filhos ou corrupção, os deputados contrários ao impeachment tenderam a mencionar termos como democracia, golpe, trabalhadores e constituição, além de mencionarem o presidente supostamente corrupto da Câmara e ferrenho opositor de Dilma, Eduardo Cunha. Não obstante, há bastante sobreposição, como no termo “povo”, bastante utilizado pelos dois grupos. Abaixo, uma quantificação mais exata dos termos utilizados, sua frequência, bem como o percentual da fala dos deputados por eles ocupado.

sim - não

Termos mais citados pelos deputados contrários e favoráveis ao Impeachment.

Deus é apenas o 13º termo mais utilizado pelos parlamentares oposicionistas à Dilma e, embora também seja utilizado pelos então governistas, não aparece entre os 20 principais termos por estes utilizados. Entre os antigos governistas, também se destacam menções à Temer, o maior beneficiado do processo, além das menções à Cunha. Desta primeira análise, podemos concluir que os votos pelo sim,  em geral partindo de deputados centristas e direitistas, tendem a se focar em aspectos tradicionais (a pátria brasileira, o estado ou cidade de origem, família, Deus  e a religião, etc.) e emocionais (esperança). Apesar de a corrupção ser citada, poucos deputados citaram as assim chamadas pedaladas fiscais, o motivo formal do impeachment. Por sua vez, os votos dos deputados contrários ao impeachment tenderam a enfatizar aspectos legais (crime – alegando que não houve nenhum – constituição, golpe e  democracia).

Os partidos:

Uma análise interessante é a de cluster, que busca agrupar os partidos a partir das falas de seus deputados. Partidos cujos deputados tiveram falas parecidas estão mais próximos, enquanto aqueles que tiveram falas pouco parecida estão mais distantes. Abaixo o resultado em duas visualizações possíveis, à esquerda, em duas dimensões e à direita, em dendograma.

 

A primeira coisa que notamos é que há dois grandes agrupamentos: o menor, em defesa do governo, é composto por PT, PCdoB e PDT (círculo vermelho) e com o PSOL em sua proximidade. Por outro lado, o agrupamento de oposição foi composto pela maioria dos partidos (DEM, PSDB, PMDB, PSC, SD, PV, PSB e outros) e com alguns partidos “nanicos” menores, como PHS, PROS e PTN, ao seu redor. Por sua vez, uma série de partidos teve deputados com discursos diferentes dos dois grandes clusters, como Rede, PSL, PMB e outros.

Dentro do cluster de oposição ao governo, é interessante notar alguns agrupamentos menores, cujo discurso foi, de certa forma, correlacionado com seu histórico partidário. Temos um agrupamento da oposição clássica (DEM e PSDB), outro com o assim chamado “centrão” (com PMDB, PSD, PR, PRB e PTB), um cluster composto pelos populistas do PSC e do Solidariedade e um agrupamento improvável composto por PP e PSB. PV e PPS, que são os partidos oposicionistas ao antigo governo com um histórico mais esquerdista, estão um pouco afastados.

Abaixo temos algumas nuvens de palavras mais utilizadas pelos deputados de alguns partidos selecionados: o maior partido de então situação (PT) e o maior de oposição (PSDB). Também trago, para fins de comparação, os discursos dos deputados dos partidos que podem ser considerados os mais extremistas, o esquerdista PSOL e o direitista PSC.

A inferência de Lula:

Chamou-me a atenção uma frase que Lula teria dito assistindo à votação e publicada em alguns veículos da grande imprensa brasileira.

“Esses que começam falando em Deus, família, mãezinha e paizinho… Pode ter certeza de que votam contra nós”

(Lula, ex-presidente, sobre a votação do impeachment de Dilma)

Na hora, eu imaginei que Lula tinha razão, o discurso dos deputados era um grande preditor do seu voto final pelo sim ou pelo não. Quando algumas palavras eram citadas, a chance de o deputado votar “sim” ou “não” parecia crescer bastante. Seria, porém, possível verificar até que ponto isso é verdade? Como o desfecho a ser explicado (o voto) era binário (as possibilidades que importavam eram sim ou não) seria possível aplicar a técnica sobre a qual já escrevi aqui em outro texto, a regressão logística.

Grosseiramente, ela permite que nós calculemos o impacto de algumas variáveis preditoras (aqui, no caso, ter dito ou não certas palavras) sobre as chances de um desfecho (ser favorável ao impeachment), ao mesmo tempo, que controla o efeito dessas variáveis preditoras entre si. Assim, escolhi três palavras que imaginei que aumentariam a chance de algum deputado votar pelo impeachment, ao mesmo tempo em que escolhi três delas que poderiam diminuir essa chance. Algo mais ou menos na linha da imagem abaixo.

modelo

Modelo causal discursivo. Em azul, palavras que presumo que aumentam as chances de um deputado votar “sim” pelo impeachment, em vermelho palavras que presumi diminuírem essas chances. 

O resultado foi bastante interessante. Essas palavras podiam prever em até 56% as variações dos votos (um resultado bastante alto em ciências humanas. Em minha dissertação de mestrado, modelos bem mais sofisticados não chegaram a 30% de poder de predição). Abaixo o efeito, confirmando a “hipótese de Lula”.

resultados

Mencionar o termo “Brasil” aumentou em quase 300% a chance de um deputado votar favoravelmente ao impeachment de Dilma, enquanto mencionar o termo “família” fazia essa chance aumentar quase 200%. Por sua vez, mencionar termos como “golpe” ou “democracia”, quase zeravam as chances de alguém votar “sim” pelo impeachment, enquanto mencionar “constituição” as diminuía pela metade. Interessante que menções a “Deus” não foram  estatisticamente significativas. Isso ocorreu porque, apesar de o termo ter sido mais utilizado pelos então oposicionistas, ele também foi utilizado por defensores de Dilma, como mostra a tabela abaixo.

menciona Deus

Surpreende que, apesar das reclamações contra essas menções, que violariam o caráter laico do Estado Brasileiro, menos de 10% dos deputados citaram Deus. Dos deputados que votaram pelo impeachment, pouco mais de 11%, ao mesmo tempo em que pouco mais de 5% dos deputados favoráveis à permanência de Dilma o fizeram.

Certamente, cabem muitas outras análises e comparações (por região, por estado, por gênero, etc.), mas isso tornaria o artigo ainda mais longo. Portanto, ficamos por aqui.

Ainda sobre machismo e o ministério de Temer: addendum

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Gabinete de Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, no final dos anos 70.

O nosso recente texto  sobre o ministério de Michel Temer provocou uma série de questionamentos (dentre eles alguns ataques grosseiros de defensores do atual governo) sobre a metodologia que nós adotamos e sobre possíveis falhas de interpretação. Apesar de tudo, dois deles, em específico são interessantes e merecem resposta, vamos a eles.

Os partidos dos deputados deveriam ter sido levados em conta.

Este questionamento parte do pressuposto de que as mulheres se concentram nos partidos de esquerda, que votaram, em geral, contra o impeachment, e, logo, não teriam espaço no gabinete do ministério Temer naturalmente . Bem, eu já havia pensado nisso quando fiz o cálculo original, mas não vi nisso um motivo para alterar a análise, visto que não há muitas diferenças entre a composição por gênero de diferentes partidos do ex-governo e da ex-oposição (por exemplo, o PSDB tem 9,6% de deputadas mulheres contra 11,6% no PT). De qualquer forma, refiz os cálculos excluindo dos deputados os quatro partidos que orientaram o voto contra o impeachment (PT, PDT, PCdoB e PSOL).

temer 2 - observado

Como podemos observar, dos 418 deputados dos partidos restantes, 37 são mulheres. Agora, calculando os valores esperados, chegamos aos seguintes resultados (valores arredondados para exibição):

temer 2 - esperado

Aplicando a fórmula do qui-quadrado, obtemos um valor de 2,28, quase idêntico ao valor anterior, cujo cálculo não fazia o controle por partido. Este valor nos dá a mesma probabilidade de 87% de alguma ligação entre gênero e escolha dos ministros. Entretanto, assim como frisei no post anterior, este valor está abaixo do valor de ouro estatístico  de 95% de probabilidade. De qualquer forma, esse segundo cálculo nos permite afirmar que não é a ausência de mulheres nos partidos de sua base em comparação com o parlamento em geral que está levando à ausência de mulheres em seu ministério. Vamos agora à segunda objeção.

O gabinete de Thatcher, uma das mulheres mais poderosas do século XX, não tinha nenhuma mulher.

Como a foto que abre esta postagem demonstra, o gabinete da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher (1979-1990) também era totalmente masculino. Apesar das divergências dentro da “teoria feminista” sobre se mulheres podem ou não ser machistas, soaria estranho acusar uma das mulheres mais “empoderadas” do século XX de “machista”. Bem, acontece que a participação feminina na política britânica do final dos anos 70 era ainda mais restrita do que a atual participação de mulheres na política brasileira. Infelizmente, os dados do Banco Mundial vão apenas até 1990, mas neles podemos ver a evolução da participação de mulheres nos parlamentos brasileiro e britânico nas últimas duas décadas.

mulher

No gráfico acima, notamos que tanto Brasil quanto Reino Unido tinham uma participação feminina na política bastante parecida no início dos anos 90, mas enquanto a deste país deu um salto naquela década, a brasileira cresceu muito mais devagar. Felizmente, achei esta matéria do jornal inglês The Guardian, com uma série de estatísticas sobre a composição da Câmara Baixa britânica (colocar no cálculo a hereditária e aristocrática Casa dos Lordes seria covardia) desde 1979, o ano inaugural da Dama de Ferro. Assim, descobrimos que, em 1979, mulheres eram apenas 3% da Câmara dos Comuns. Com este número, podemos aplicar o mesmo critério que aplicamos a Temer e Dilma à Thatcher e calcular o quanto a ausência de mulheres no gabinete desta última pode ser explicado pela ausência de mulheres no parlamento britânico de 1979 (uma realidade que eles deixaram para trás faz tempo, ao contrário de nós).

thatcher - observado

Os valores esperados, aplicando o mesmo critério dos casos anteriores seriam os seguintes: thatcher - esperado

Como podemos notar, podia-se esperar apenas uma mulher no gabinete de Thatcher. Assim, podemos calcular se essa diferença entre uma mulher esperada e nenhum observada pode ser atribuída, de alguma forma, a alguma discriminação de gênero.

Aplicando a fórmula do qui-quadrado ao gabinete de Thatcher, chegamos ao valor de 1,27, que por sua vez, nos dá uma probabilidade de relação de 74%, um valor bem mais distante do critério de 95% (ou 90% tomando-se um critério de p<0.1) do que os 87% encontrados no cálculo sobre o gabinete de Temer e um tanto mais próximo de uma probabilidade de 50%, um valor que não nos diz nada, visto é a probabilidade que uma moeda tem de dar “cara” ou “coroa” após ser jogada para cima (ou ainda, a probabilidade de um macaquinho acertar a resposta, caso perguntássemos para ele se existe relação ou não).

Bem, com isso, creio que a análise pela qual fui atacado continua válida, apesar de ser uma aproximação que está longe de se pretender definitiva.

 

 

PS: Ao contrário do que afirmamos no post anterior, este não foi o primeiro governo desde a redemocratização a estrear sem mulheres. Os governos de Sarney (1985) e Itamar Franco (1992) também o fizeram. Apesar disso, é de se notar que apenas os três governos não eleitos da Nova República tiveram gabinetes inaugurais compostos apenas por homens. E, CURIOSAMENTE, todos eles eram do PMDB. 

 

A Escolha do Gabinete de Michel Temer foi Machista?

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Gabinete do primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, com composição de gênero igualitária.

A escolha, pelo presidente interino Michel Temer,  de um ministério composto apenas por homens suscitou uma série de questionamentos sobre um possível caráter “machista” ou “patriarcal” de seu governo. Levando em conta que mulheres são 50,6% da população brasileira (e também são maioria dos graduados no ensino superior, antes que se levantem argumentos sobre uma menor capacitação), fica realmente estranho um gabinete composto por 100% de homens. Ocorre que o gabinete de Dilma também ficava devendo na quantidade de mulheres. Seu primeiro gabinete no segundo mandato, de 2015, tinha apenas 4 mulheres entre 39 ministros, o que corresponde a pouco mais de 10% do total.  Quando comparamos ambos os gabinetes com a composição da população brasileira, notamos que mulheres sempre estiveram sub-representadas, embora, obviamente, ter algumas mulheres sempre pode ser visto como melhor do que não ter nenhuma.

Talvez o problema não esteja na escolha dos gabinetes em si, mas na baixa representação de mulheres na política brasileira. Na Câmara dos Deputados, há apenas 45 mulheres, o que corresponde a menos de 9% do total.  Quando consideramos Câmara e Senado, a proporção é levemente maior, mas não passa de 10% do total. Esse valor é realmente tão baixo? Qual é a proporção em outros países? Bem, vejamos o seguinte gráfico elaborado com dados do Banco Mundial:

probabilidade população

Proporção de Mulheres nos Parlamentos – Brasil e Regiões Selecionadas (Banco Mundial)

Na imagem acima é possível verificar que a proporção de mulheres no Parlamento Brasileiro se manteve praticamente estagnada nos últimos anos e muito abaixo da média mundial (atualmente em 22,9%). Também estamos bem abaixo da média de nossos vizinhos latino-americanos (27,9%) e da União Europeia (28,4%). O que é incrível, porém, é que perdermos de lavada para os países do Mundo Árabe (18,8%, um número que tem crescido desde a eclosão dos movimentos que ficaram condensados sob o rótulo de Primavera Árabe), amplamente conhecidos pela privação de direitos a que são submetidas as mulheres que lá vivem.

Levando em conta que os membros dos ministérios, normalmente, vêm do Parlamento, ou são indicados pelos partidos que dominam o Parlamento, é de se imaginar que a falta de mulheres no gabinete seja um reflexo da sua baixa representação na política de modo geral. Agora, mesmo levando em conta esta baixa representatividade, há mulheres no parlamento, enquanto no gabinete de Temer não há nenhuma. Qual é a probabilidade dessa diferença se dever ao machismo ou ser, de fato, aleatória, como defendem os apoiadores do governo?

Para responder a esta questão, vamos tentar nos valer da Estatística Inferencial. Existe um cálculo estatístico bastante simples chamado de teste do qui-quadrado.  Este teste é representado pela seguinte fórmula:

x² = ∑ [(o -e)²/e]

Não é necessário decorá-la, mas o teste, basicamente compara os valores que são observados na realidade com os valores esperados, que apareceriam, em um mundo ideal, caso não houvesse relação entre as variáveis – no caso gênero e presença no ministério e nos entrega uma probabilidade de a relação entre as variáveis ser aleatória ou não. Como chegamos a este número ideal? Bem, aqui temos a distribuição por gênero no ministério de Temer e na Câmara dos Deputados conforme foram observadas no primeiro dia de seu governo interino:

observado - temer

Para chegar ao valor esperado, basta dividir o total de cada categoria na coluna pelo total geral e, depois, em cada célula, usar o valor resultante e multiplicar pelo respectivo total de cada linha. Após este cálculo chegamos ao seguinte quadro:

esperado - temer

Se nossa hipótese de que o número de mulheres nos ministérios tem alguma relação com o número de mulheres no Parlamento, era de se esperar que houvesse ao menos duas mulheres na composição do gabinete de Temer, mas não é isso que ocorre. Bem, mas probabilidades são sempre gerais. Se você jogar uma moeda para cima 10 vezes, é de se esperar que haja várias vezes em que o resultado não seja meio a meio – às vezes vamos ter 6 caras e 4 coroas, outras 3 caras e 7 coroas. Essas variações são perfeitamente normais. Agora, se em 50 tentativas, uma moeda der coroa 45 vezes, temos um forte indício de que se trata de uma moeda viciada. Assim, aplicando a fórmula do qui-quadrado podemos identificar a probabilidade de essa diferença entre nenhuma mulher observada e duas mulheres esperadas é aleatória ou não.

Depois de feito o cálculo chegamos a um valor do quiquadrado de 2,251. Ele, por si só, não quer dizer nada, mas os estatísticos, há décadas, calcularam as probabilidades associadas a cada valor de quiquadrados para diferentes tamanhos de tabelas (no nosso caso uma tabela 2 x 2, ou com 1 grau de liberdade, na linguagem estatística). Esses cálculos estão amplamente disponíveis e existem mesmo sites que calculam a probabilidade (também chamada de valor p) associada a cada valor de quiquadrado. Bem, a partir do nosso valor, chegamos a uma probabilidade de apenas 13% de que a falta de mulheres no ministério de Temer seja aleatória. Ou seja, podemos afirmar que há uma probabilidade de 87% que o tenha havido, de fato, uma discriminação por gênero na escolha do Gabinete. Cabe lembrar, que, em estatística, se costuma dizer que um resultado é significativo apenas quando temos mais de 95% de probabilidade em uma relação, mas levando em conta que houve a presença de mulheres em todos os gabinetes ministeriais desde o final da Ditadura Militar, um valor de tal ordem pode ser intrigante.

Quando aplicamos a formula à Dilma, chegamos aos seguinte resultado: há uma probabilidade de 23% de favorecimento de Dilma às mulheres na composição de seu gabinete (levando, obviamente, em conta a composição do Parlamento), visto que a proporção de mulheres no primeiro gabinete do segundo mandato de Dilma era levemente superior àquela encontrada no parlamento:

probabilidade parlamento

Um resultado interessante e ilustrativo é quando fazemos o mesmo cálculo para Dilma e Temer levando em conta a proporção de homens e mulheres na população em geral. O resultado é o seguinte:

probabilidade população.png

Ou seja, apesar de que, quando levamos em conta a representatividade de gênero no Parlamento, Dilma se sai muito melhor do que Temer, quando levamos em conta a divisão mais equânime de gênero que ocorre na população em geral, o resultado é o mesmo para ambos os governos. As 4 mulheres entre 39 ministros de Dilma não a colocaram em melhor posição neste quesito.

Assim, cabe colocarmos maior evidência na baixa representatividade de mulheres na política brasileira, uma das maiores vergonhas nacionais.Quando passarmos de nossos vergonhosos 9% para uma proporção mais próxima daquelas das democracias avançadas, um gabinete ministerial composto apenas por homens nos soará como um anacronismo tão grande quanto a restrição ao direito de voto feminino, abolida, em nosso país, em 1932.