Civilização Luso-Brasileira e os Povos Originários

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Ao contrário do que afirma nosso complexo de inferioridade, a civilização luso-brasileira foi uma das mais fantásticas que a humanidade já produziu. Fomos muito mais iluministas e liberais do que os próprios europeus do norte.

Duvida? Comparemos como anglo-americanos e luso-brasileiros trataram seus povos originários ao longo dos últimos séculos:

No século XVIII, o founding father e líder da revolução americana, George Washington, dizia sobre os indígenas: “Os objetivos imediatos são a sua destruição total. É essencial arruinar suas plantações.”

Quase na mesma época, o ministro português Marquês do Pombal proibia a escravização indígena, assegurava seus direitos como súditos do monarca português e garantia uma escola em cada aldeia indígena. Isso não foi só letra morta. A minha cidade natal, Gravataí (RS), surgiu como uma aldeia de índios fugidos das guerras que tomavam conta das Missões espanholas. Lá, foram fundadas escolas, olaria, moinhos, estâncias, etc. para esses guaranis, tudo às expensas do tesouro português, sob ordens diretas de Pombal.

No século XIX, outro presidente americano, Andrew Jackson, dizia: “eles não possuem inteligência, devem logo desaparecer diante de uma raça superior”. Aqui, uma das primeiros obras literárias do Brasil independente, a ode indigenista I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, foi logo tornada um símbolo nacional e um dos mais belos épicos da língua portuguesa. Logo depois, o senador do Império, José de Alencar, também um dos maiores escritores brasileiros, escrevia Iracema, outra obra indigenista, uma bela alegoria do surgimento da pátria. Sem falar de O Guarani, também de Alencar, que, depois, inspiraria a ópera homônima de Carlos Gomes – sucesso em todo o mundo.

Já no século XX, mesmo um grande “humanitário” e progressista como Theodore Roosevelt (não confundir com Franklin, seu sobrinho, que também foi presidente dos EUA) afirmava “não chego a dizer que índio bom é índio morto, mas isso é verdade em 9 a cada 10 casos e gostaria de estudar com cuidado o caso do décimo”. 


Exatamente na mesma época em que “Ted” era presidente dos EUA, aqui, o marechal do exército Cândido Rondon (ele próprio descendente de índios), que também dá nome ao estado de Rondônia, mapeava as regiões inexploradas do território brasileiro, enquanto as interligava aos centros do país por meio do telégrafo. Nisso, várias tribos então isoladas eram contatadas e pacificadas, sempre de forma não-violenta. Seu lema era “morrer se preciso for, matar nunca!”: “Em setembro de 1913, Rondon foi atingido por uma flecha envenenada dos índios Nhambiquaras. Sendo salvo pela bandoleira de couro de sua espingarda, ordenou aos seus comandados, porém, que não reagissem e batessem em retirada, demonstrando seu princípio de penetrar no sertão somente com a paz”. Ele foi, também, o organizador do Serviço de Proteção ao Índio, hoje, Funai.

Em Busca da Boa Identidade

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A causa de grande parte dos problemas políticos atuais é o liberalismo individualista pressupor que as pessoas são autossuficientes: devem buscar seus próprios valores e bastarem a si mesmas, sem necessidade de vínculos mais ou menos duradouros: é o mundo “líquido” do qual falava Bauman. Esse liberalismo individualista é compartilhado pela direita e pela esquerda, cabe lembrar.

Daí vem a ojeriza a cantar o hino ou mesmo a reverenciar a bandeira. São atitudes até justificadas, já que na maior parte do tempo o simbolismo nacional foi utilizado apenas para patriotadas e maniqueísmos chauvinistas.

Ora, acontece que as pessoas necessitam de identidades e significados. Provavelmente, isso deve ter a ver com alguma característica profunda da natureza humana ou a uma ontologia comum a todos nós. Não sei.

O fato é que quanto as pessoas deixam de buscar essa identidade em vínculos saudáveis, como a família, a comunidade local, as igrejas ou mesmo a comunidade política, a anomia prevalece e sobram as formas degeneradas de comunidade. Por isso, é tão comum vermos as pessoas usando coletivos identitaristas de militância como terapia, bem como a avidez com que elas se juntam a esses grupos quando entram numa universidade pública. Se a esquerda tem os coletivos como forma de suprir a necessidade de comunidade, a direita tem o suprematismo racial, os grupos de incels ou até a seita de um certo astrólogo.

Por isso, não há nada de necessariamente opressor ou chauvinista em cantar o hino nacional (ignorando o slogan ilegal que o comunicado do MEC trouxe consigo, que é o verdadeiro problema, ao contrário do que os apologistas do governo tem divulgado). O hino é um ritual, e a vida é feita de rituais. É um símbolo que, assim como os demais símbolos nacionais, nos lembra que fazemos parte de uma comunidade política de 200 milhões de pessoas, para as quais temos deveres e obrigações especiais. Lembra que compartilhamos de uma história e de instituições comuns. Como todo ritual, cantar o hino fortalece vínculos. É a virtude cívica, uma forma de identidade saudável. Se as identidades virtuosas não forem cultivadas, restam apenas as outras. Ao invés de um patriotismo republicano, resta o nacionalismo retórico e patrioteiro, tão em voga no Brasil dos últimos anos.

Apogeu e Queda da Sociologia

Depois de virar moda dizer que tudo é construção social, a reação é afirmar que nada, ou pouca coisa, da vida humana é construída socialmente, especialmente em algumas vulgarizações de modelos sociobiológicos. Na verdade, a maior parte da vida em sociedade é, sim, construída (parece uma obviedade, mas não custa repetir). Tudo o que se convencionou chamar de “instituições” são, de fato, construções: dinheiro, mercados, democracia liberal, os Correios, países, casamento, a presidência do Brasil, escolas, o islã, fórmulas de herança, partidos políticos, escrita, constituições, etc. A lista é infinita.

A Sociologia foi definida por seu fundador acadêmico, Durkheim, como “a ciência das instituições”. E enquanto ela cumpriu, bem ou mal, esse papel foi a mais importante das ciências sociais – a profissão de sociólogo era uma das mais respeitadas, o curso formava 30 mil estudantes por ano só nos EUA (em geral, empregados após a formatura), etc.. Quando, porém, os sociólogos passaram a pautar seus trabalhos pela tautologia de que instituições sociais são construídas socialmente, ou, pior ainda, de que coisas como o sexo biológico, a tuberculose, a obesidade, ou mesmo a gravidade e a realidade física são construções sociais, veio o declínio. Dentro das ciências sociais, foi ultrapassada em prestígio e cientificidade pela Economia, Psicologia e Linguística. Fora, é ameaçada pela Genética e pela Biologia em geral. Para o público leigo, virou coisa de vendedor de miçangas e até de charlatão.

Podemos nos aproximar empiricamente desse fenômeno através de dois gráficos retirados do Ngram Viewer, uma ferramenta do Google que permite ver o percentual de cobertura de alguns termos dentro de um corpus de livros (no caso, quase todos os livros publicados em inglês de 1500 até 2008). Não é um material limitado a livros científicos, mas é uma ótima sondagem do ambiente intelectual geral em cada década. Abaixo, notamos que o auge de interesse da Sociologia ocorreu, primeiro, nos anos 1930 e, depois, nos anos 1970. Desde lá, o declínio vem sendo inexorável, enquanto a Genética e a Biologia ganham espaço.

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No segundo gráfico, notamos algo surpreendente: o declínio do interesse geral pela Sociologia está fortemente correlacionado com a queda no interesse nas “instituições sociais” e com o crescimento explosivo, desde os anos 1970, do interesse em “construções sociais” – um termo que quase não aparecia antes dessa década.

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A conclusão é óbvia: o declínio da Sociologia corresponde exatamente ao período em que abandonou sua vocação clássica de ser a Ciência das Instituições e passou a se pautar pelo “lacre”, nihilismo e “desconstrução” associados a ideia de que tudo é construção social. Os clássicos, embora certamente conhecessem a natureza socialmente construída das instituições, não utilizavam o termo, pois eles sabiam que a afirmação de que as instituições sociais são construções sociais é tautológica, portanto inútil. Da mesma forma, graças à formação sólida em filosofia e ciências naturais que a maioria teve, eles sabiam que os mundos natural, biológico e mesmo psicológico não se reduzem a construções históricas.

Diferenças de estatura nos estados brasileiros

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Apesar de ter crescido quase 9 cm desde os dados mais antigos, de 1914, o brasileiro ainda é (ou era, em 2008, ano da última medição), em média, relativamente baixo. Também persistem diferenças entre os estados. Os homens do Rio de Janeiro tendem a ser 7,5 cm mais altos do que os homens do Amazonas e as cariocas quase 8 cm mais altas do que as paraenses. Vários fatores podem contribuir para as diferenças: biológicos – o Sul e Sudeste do Brasil receberam maior contribuição genética de povos europeus, enquanto indígenas brasileiros, com forte impacto genético no Norte, tendem a ser mais baixos; ambientais (climas quentes e úmidos tendem a favorecer organismos menores e isso ocorre também entre animais da mesma espécie) e, também, socioeconômicos. Grande parte do crescimento da altura da população em países desenvolvidos está ligada à melhor alimentação e a alimentação pode ser mais adequada nos estados brasileiros mais ricos, localizados no sul e sudeste. Essa influência é bastante independente da influência genética, pois mesmo povos com a mesma origem podem exibir alturas discrepantes após poucas décadas. Os jovens sul-coreanos que nasceram a partir dos anos 80 e 90, por exemplo, tendem a ser muito mais altos do que seus primos norte-coreanos nascidos na mesma época – e essa diferença se deve às diferenças de alimentação entre ambas as Coreias.

 

O Brasil à beira do abismo

Originalmente publicado em Seguinte: em 04 de Outubro de 2018

Confirmado o cenário de segundo turno indicado pelas pesquisas eleitorais, duas forças se baterão pela cadeira presidencial: o lulismo representado por Haddad, um movimento que desde a redemocratização agrega uma parte significativa do eleitorado brasileiro e, como seu antagonista, a extrema-direita representada pelo capitão reformado. Nunca houve uma extrema-direita de expressão eleitoral no Brasil. A Arena, que sustentava a Ditadura Militar, era um partido fisiológico. Os presidentes-generais, por sua vez, não se submetiam ao sufrágio popular, ainda que fossem mais radicais do que os parlamentares da Arena – inclusive, por conta disso, fecharam o Congresso mais de uma vez.

Desde a redemocratização, duas forças polarizaram as eleições presidenciais com o lulismo petista, com três vitórias e quatro derrotas. Na primeira vez, foi um populismo de direita – embora não militarista e não antidemocrático – representado pela figura de Collor. Nas outras vezes, foi o social-liberalismo, às vezes mais de centro, às vezes mais de centro-direita, representado pelo PSDB.

Depois de ser a primeira ou segunda força política do país durante mais de 20 anos, a centro-direita, ao que parece, sofrerá a maior derrota de sua história. Após 13 anos de oposição ao PT, ela não pode oferecer mais nada do que antipetismo e o governo de Temer – apoiado, cabe lembrar, pelo PSDB. Como ninguém gosta de Temer, só sobrou o antipetismo. Por sua vez, o lulismo renasce, mesmo após escândalos de corrupção sem igual e do desastre econômico legado por Dilma, o primeiro “poste de Lula”. Isso era improvável, mas após os quase três anos de governo Temer, ficou a impressão de que a centro-direita, após mais de década valendo-se do discurso ético, era, no mínimo, tão corrupta quanto os que denunciaram. E os resultados fracos na economia, se são melhores do que a catástrofe de Dilma, ficam eclipsados quando comparados à bonança dos anos de Lula.

Por fim, Bolsonaro agrega, em uma coalizão improvável, aqueles que são seu público cativo (defensores da ditadura militar, evangélicos radicais, etc.), além de pessoas “apolíticas” indignadas com a corrupção e incompetência das antigas duas forças dominantes e, também, liberais que gostariam que o Brasil fosse mais parecido com países como Estados Unidos, Alemanha ou Japão. Ocorre que esses são países que são democracias plenas e com histórico de respeito impecável aos direitos individuais de seus cidadãos. Nada é mais distante disso do que a ideologia bolsonarista que defende ditadura militar e “combate aos direitos humanos”. Votando em Bolsonaro, porém, o liberal mira no mundo desenvolvido e acerta numa republiqueta das bananas, governada por um generalíssimo. Algo bem parecido com a  Venezuela bolivariana, cujo falecido líder o capitão já declarou admirar.  Nisso ele está junto com o petismo radical, o seu arquirrival. Ao menos, o petismo não tem os tanques de Mourão para impor a sua vontade.

 

Ausência paterna e violência: onde de fato mora o problema

Publicado originalmente em Seguinte: em 19 de Setembro de 2018

A tese de que há uma relação entre ausência paterna e violência, ventilada de forma preconceituosa e misógina pelo General Mourão, foi criada pelo sociólogo americano Pat Moynihan nos anos 60 e já foi citada por vários políticos, de direita e de esquerda, inclusive Obama.

A Sociologia, no entanto, tende a superestimar os efeitos da socialização familiar. Desde a revolução causada na psicologia social com a publicação de The Nurture Assumption, de Judith Harris, e dos estudos em larga escala com gêmeos e crianças adotadas, sabe-se, que mantendo os genes constantes, o efeito do ambiente familiar sobre a personalidade das crianças é muito pequeno. Como assim? Estaria defendendo uma espécie de determinismo biológico? Não, muito pelo contrário. Se o efeito da família é muito pequeno, o efeito do ambiente social mais amplo é enorme. Aí que entra a relação entre famílias monoparentais e violência. E não é uma questão apenas relacionada à pobreza ou desigualdade, como muitos supõem.

Por mais que se discutam as “causas” da violência, existe um fator que é consenso em toda a criminologia e áreas correlatas: a proporção de homens jovens na população – que são responsáveis pela maioria de todos os crimes violentos em qualquer sociedade. Se as outras coisas forem iguais, sociedades com uma proporção maior de homens jovens serão mais violentas. Este é um dos exemplos mais próximos do que seria uma “lei” nas ciências humanas.

Um dos principais fatores que podem atenuar as disputas por dominância entre homens jovens é justamente o casamento e a família (neste ponto, conservadores estão corretíssimos). Homens casados e pais de família têm uma chance muito menor de se envolverem em situações violentas do que homens solteiros (os mecanismos por trás disso podem ser discutidos em outro momento).

Bem, assim chegamos à relação entre abandono paterno e violência. Se os homens de comunidades carentes não estão em casa cuidando dos filhos (e trabalhando para sustentá-los), eles estão andando em bandos e disputando dominância e recursos escassos e, eventualmente, se matando entre si. Isso faz com que essas áreas onde há abandono paterno generalizado também sejam as mais violentas. E aí entra a socialização secundária (ou fora da família), que, hoje, se sabe que é ainda mais importante do que a familiar. Quando os filhos abandonados pelos pais chegarem à adolescência, encontrarão um ambiente social permeado pela violência (causada pelos próprios pais que os abandonaram, se eles tiverem a sorte de ainda estarem vivos). E essa é a causa da correlação entre violência e pessoas oriundas de famílias monoparentais.

Ou seja, o mecanismo não é a figura de autoridade. Mães e avós são fontes de autoridade moral tão boas quanto os pais, senão melhores. Isso também explica porque os filhos de mulheres feministas de classe média, que são adeptas da “produção independente”, não têm maiores chances de se tornarem bandidos. Seus pais biológicos não estão disputando dominância e causando anomia social no Leblon ou no BomFim. Aliás, o próprio Pat Moynihan foi criado sem o pai.

 

A “altright” deles e a nossa

Publicado originalmente em Seguinte: em 07 de Setembro de 2018

Gostam de comparar o Bolsonaro e o Trump, mas afora alguma canalhice em comum – que não é exatamente rara na política – o primeiro é muito pior. Em primeiro lugar,Trump é inteligente. Apesar dos meios relativamente escusos, construiu um império empresarial bilionário. Bolsonaro, em um sistema meritocrático como o exército, nunca conseguiu passar de capitão – apenas o segundo posto da hierarquia do oficialato. Em vários documentos, seus superiores – incluindo o ex-presidente/general Geisel – o criticavam como despreparado, ambicioso e sádico. Para aumentar o então relativamente magro soldo, se envolveu em garimpo ilegal e motins – o que levou à sua expulsão das forças armadas como terrorista, após ser flagrado planejando explosões à bomba. Desde então, se envolveu na política basicamente como um sindicalista representante da enorme guarnição do baixo oficialato estacionada no Rio de Janeiro. Um homem sem virtú, até que a fortuna lhe sorriu com a história do famigerado “kit gay”.

Trump, apesar da birra infantil típica dos bilionários midiáticos, tem algum controle emocional. Nunca cogitou, por exemplo, fuzilar os democratas – como Bolsonaro defendeu fazer com os petistas. Por outro lado, Trump é abertamente racista. Bolsonaro também. A diferença é que lá isso é comum. No Brasil, rompe com uma tradição igualitária. Lá, negros eram impedidos de votar ou de frequentar os mesmos espaços que os brancos até 40 anos atrás. Aqui, pessoas de cor já votavam desde a época colonial – desde que tivessem alguma propriedade, assim como os brancos. Grande parte dos nossos heróis nacionais é negra: Machado, na literatura, Aleijadinho, na escultura, etc. Tivemos presidentes negros já na República Velha. FHC nunca teve vergonha de sua origem mestiça. É, portanto, uma degeneração Bolsonaro medir negros em “arrobas”. Talvez não seja por acaso ele vir de uma família de imigrantes italianos recentes – e não seja fruto da secular tolerância racial da civilização luso-brasileira.

O mais importante, por fim, é que as instituições democráticas americanas têm um quarto de milênio. Sua Constituição, Parlamento e forças armadas são legalistas e servem como contrapeso eficaz a qualquer maluco que ocupe o executivo. Aqui, nossa sétima constituição tem 30 anos. E já é a terceira mais longeva. Metade do parlamento é composto pelo imprestável “centrão”, disposto a apoiar qualquer um em troca de cargos. E com um presidente e vice militares – algo que não aconteceu nem na última ditadura, quando o vice era civil – alguém confiaria na disposição das forças armadas em defender a constituição e democracia brasileiras? Lembre-se que elas estiveram envolvidas em vários golpes ao longo da história brasileira, desde a proclamação da República (que, muitos esquecem, foi um golpe militar) até o último, em 1964.

Escola sem Partido ou Escola sem Juízo?

Originalmente publicado em Seguinte: em 05 de Junho de 2018

Ninguém duvida que as ideologias podem obscurecer o nosso entendimento sobre a realidade. Se neutro é aquilo que reflete a verdade, sem distorções advindas de ideologias, então a neutralidade deve ser a meta de qualquer sistema de ensino. Acontece que isso só é possível para o domínio dos “fatos”. Não há neutralidade possível quando falamos de valores, a não ser que caíamos no niilismo e relativismo. Se a educação remete a concepções de bem, precisamos definir quais são os valores que queremos promover – por exemplo, a justiça, a civilidade, a verdade, etc. Os projetos de lei Escola sem Partido fazem exatamente ao contrário, pois definem que o estudante não deve ser submetido a algo que contrarie as crenças e valores dos pais. Não é preciso pensar muito para imaginar aonde isso pode levar: além dos casos óbvios de professores de biologia sendo impedidos de ensinar sobre a evolução para alunos filhos de evangélicos, podemos vislumbrar professores sendo proibidos de ensinar para filhos de bandidos que matar é errado.

Bem, de qualquer forma, defensores mais sensatos de projetos do tipo defendem que se a educação pública deve ser laica em termos religiosos, também o deve ser em termos políticos – evitando favorecer esta ou aquela ideologia. É uma ideia, à princípio, razoável. Porém, a educação laica resolve a questão religiosa simplesmente não a mencionando em sala de aula. Lugar de aprender sobre religião é na catequese, na escola dominical, no centro espírita ou em casa, não na escola. Quando tentamos aplicar o mesmo à política, a situação se torna complicada. Como evitar assuntos políticos em disciplinas como história, geografia e até mesmo ciências (por exemplo, em discussões sobre o aquecimento global, um tema muito sensível do ponto de vista político)? Como falar da crise da Venezuela sem mencionar questões políticas? Dos Blocos Econômicos? Da Globalização? Da Era Vargas? Dos dilemas éticos envolvendo a clonagem humana ou o aborto? É impossível, a não ser que se elimine essas disciplinas e assuntos do currículo – o que empobreceria demasiadamente a formação escolar.

É óbvio que o professor tem um dever moral de não impor suas visões pessoais – que todos têm – aos seus alunos. O sociólogo alemão Max Weber defendeu um ponto de vista muito interessante sobre o assunto em “Ciência e Política: duas vocações”: por mais que o professor tenha convicções sobre um assunto, é seu dever em sala de aula expor as principais posições sobre dado tema. No caso, Weber cita a democracia, um assunto bastante polêmico na época em que ele escreveu (o Império Alemão ainda era governado pelo autoritário Kaiser). Segundo o autor, o professor deve expor as principais definições de democracia, os principais exemplos de cada definição, e os prós e contras do sistema de acordo com seus defensores e detratores. Com essas informações, o aluno terá autonomia intelectual para formar sua posição.

É impossível resolver isso de forma satisfatória com leis, porém. Nessas horas, os políticos “liberais”, autores da maioria desses projetos de lei, deixam de lado a ideia de que a “mão invisível” promoverá a “grande ordem espontânea” e tentam resolver o problema da doutrinação escolar a partir da interferência e regulação estatal. Ocorre que ninguém é capaz de dar uma definição prática do que seja doutrinação e o resultado provável é que ela será definida de acordo com o que o grupo no poder em dado momento não gosta. Basta lembrar do caso recente de Foz do Iguaçu, onde os edis municipais proibiram qualquer menção à palavra “gênero” nas salas de aula da cidade. Além de inviabilizar qualquer discussão sobre assuntos como violência doméstica ou diversidade sexual, um professor de ciências poderia ser punido ao falar dos gêneros taxonômicos de classificação dos seres vivos, ou um professor de literatura poderia enfrentar um processo disciplinar por mencionar os gêneros literários.

O Brasil e a tradição democrática

Originalmente publicado em Seguinte: em 10 de Maio de 2018

Ao contrário do que muita gente imagina, a democracia não é exatamente algo novo no Brasil, posterior ao final da (última) ditadura. No período colonial, as instituições lusitanas do Antigo Regime, o Clero e a Nobreza, tinham muito pouco poder. Assim, uma antiga tradição portuguesa, as câmaras municipais, passaram a ter uma influência muito maior do que tinham na metrópole. Essas câmaras faziam o papel de um governo local (o único que de fato importava na maior parte do território) e eram eleitas por todos os homens livres, mesmo que analfabetos. Para os padrões da época, o Brasil colonial era bastante democrático (como a antiga Aldeia dos Anjos ainda era subordinada à Porto Alegre, a cidade só foi ter sua câmara no tardio ano de 1880. Ainda assim, era comum que gravataienses fossem eleitos para a câmara da capital, como o Coronel Sarmento, que dá nome a uma rua do centro da cidade).

As câmaras eram um exemplo de governo democrático, mas não liberal (assumindo a distinção entre democracia e liberalismo que explico na última coluna no Seguinte:). Com a independência, uma assembleia constituinte foi convocada por Dom Pedro I. Como ele não gostou muito do que estava sendo discutido, que poderia ter levado a uma constituição extremamente liberal para o seu gosto, ele fechou a assembleia com o exército e impôs uma constituição rascunhada por ele e seus auxiliares próximos. A Constituição de 1824 foi a mais duradoura que tivemos (enquanto a Constituição atual está fazendo 30 anos, ela durou 67 anos). Ainda que imposta de cima para baixo sobre a sociedade, esta constituição era bastante democrática para os padrões da época, mesmo que o imperador retivesse muito mais poder do que nas monarquias constitucionais europeias, como a da Inglaterra, por exemplo. Ainda que proclamasse os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, essa primeira constituição nada dizia sobre a escravidão, com a qual conviveu até a abolição de 1888.

Na época, o padrão era que o voto fosse censitário, ou seja, além de ser necessário ser homem, maior de idade e livre, era necessário ter uma renda mínima para votar, 100 mil réis anuais no caso. Essa renda, porém, era bastante baixa e, na prática, qualquer empregado ou pequeno proprietário poderia votar para as eleições parlamentares, seja nas câmaras municipais ou nas assembleias provinciais e imperial, de onde saia o primeiro-ministro, o chefe do poder executivo nos tempos monárquicos. Como não havia, até 1880, restrição ao voto de analfabetos, o Brasil foi um dos países mais democráticos de todo o mundo naquela época, com mais de 20% da população participando das eleições. Na Inglaterra, a proporção era bem menor, de menos de 5%. Enquanto, nos Estados Unidos, muitos negros só puderam votar nos anos 1960, após as campanhas pelos direitos civis, lideradas por Martin Luther King, no Brasil nunca houve nenhuma barreira formal à participação eleitoral de negros livres – tanto é que houve um presidente negro já na República Velha, Nilo Peçanha. A participação eleitoral de analfabetos acabou com a reforma de 1880, que os impediu de votarem (eles compunham, então, cerca de 80% da população). Essa restrição se manteve com a proclamação da república e só foi levantada com a atual constituição (embora, atualmente, os analfabetos sejam cerca de 7% da população).

Após alguma instabilidade inicial, a República proclamada em 1889 manteve uma tradição de eleições periódicas e direitos civis mais ou menos garantidos, pelo menos até a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Assim, durante meio século, o Brasil conviveu com governos mais ou menos autoritários até o final da ditadura militar em 1985, intercalados pelos governos democráticos do que veio a ser chamada, pejorativamente, de República Populista (os governos de Juscelino, Jânio e Jango). Durante esse período de 55 anos, o Brasil teve 4 constituições diferentes. Ainda assim, após a redemocratização, o país reencontrou mais ou menos facilmente o caminho da democracia, o que talvez se explique pelos séculos de tradição colonial de democracia nas câmaras municipais e pelos quase 70 anos de alta participação política no Império.

Collor foi eleito em 1989 e sofreu um impeachment construído sobre um amplo consenso, que abrangeu tanto a direita quanto a esquerda. Após o pequeno trauma dos anos “colloridos”, houve as eleições presidenciais de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010, todas transcorridas sem maiores incidentes, com o presidente eleito assumindo normalmente e sem maior contestação – a oposição, na maior parte das vezes, soube assumir a derrota e reconheceu a legitimidade do lado vencedor. Isso não aconteceu, porém, em 2014. Conforme Celso Rocha de Barros, em artigo na Revista Piauí, as democracias não sobrevivem quando a oposição usa todas as “balas de canhão” contra o “outro lado”, exceto em situações de amplo consenso. Em 250 anos de democracia norte-americana, houve dois processos de impeachment, um devidamente rejeitado (pois baseava-se no fato de Bill Clinton ter recebido ou não sexo oral de uma estagiária) e outro que terminou na renúncia de Nixon antes da sua conclusão. No Brasil, houve dois processos em pouco mais de duas décadas. Se o impeachment de Collor foi baseado em um consenso, o de Dilma não. Para 48% dos brasileiros, Dilma foi vítima de um golpe em 2016.

Sim, o PT pediu o impeachment de todos os presidentes desde Sarney até FHC, mas não teve poder de levar o pedido adiante. Já os tucanos, aliados ao MBL e ao PMDB, conseguiram derrubar Dilma facilmente – embora, obviamente, os próprios erros do governo e as mentiras da campanha de 2014 ajudaram a pavimentar o terreno. Se o impeachment, ou “golpe”, de 2016 traumatizou ou não a democracia brasileira vamos começar a descobrir nas eleições deste ano, de onde pode sair eleito algum candidato extremista e autoritário.

A democracia dos antigos e a dos modernos

Originalmente publicado em Seguinte: em 26 de Abril de 2018

Entre os fins dos anos 1990 e o começo dos anos 2000, a democracia havia chegado ao seu auge. Pela primeira vez na história, a maioria da população mundial vivia sob regimes democráticos. Além dos lugares onde ela já fincara raízes desde o século XIX (especialmente nos EUA, nos países da Commonwealth britânica e em um que outro país da Europa, como a Suécia), as ditaduras de direita do sul da Europa (Grécia, Portugal e Espanha) e da América Latina (incluindo o Brasil) e de esquerda no Leste Europeu haviam sido substituídas por democracias mais ou menos bem-sucedidas. Segundo o Índice de Democracia da revista inglesa The Economist, 2006 foi o auge. Desde lá, porém, um fantasma ronda o mundo: ano a ano, países democráticos se tornam autoritários e mesmo aqueles com democracias consolidadas veem o sinal amarelo se acender.

Paradoxalmente, esses declínios democráticos recentes surgem do voto dos cidadãos e não de golpes militares ou revoluções. Países que eram modelos em suas regiões se tornam ditaduras após eleições de políticos populistas e/ou autoritários: nossa vizinha Venezuela foi um dos únicos países da região que não caíram sob ditaduras militares nos anos 60 e 70, hoje está um passo de degenerar em uma ditadura escancarada em meio ao caos social. A Turquia, que era um modelo de laicidade no mundo islâmico (desde uma revolução nacionalista nos anos 1920 ter derrubado o sultão otomano), hoje, tem um presidente que concentra cada vez mais poderes e flerta com a teocracia islâmica. Mesmo os países pioneiros na experiência democrática sofrem abalos: os EUA viram a eleição de um radical populista, enquanto na França, o partido semifascista de Marine Le Pen chegou a fazer mais de um terço dos votos.

O filósofo italiano Norberto Bobbio afirma que a democracia moderna (que ele e outros chamam de democracia-liberal) é o resultado da acomodação de duas tradições bastante distintas. Uma, a democracia no sentido antigo, uma ideia que vem desde a Atenas Clássica, busca distribuir o poder entre os cidadãos – dando ênfase à vontade da maioria. A outra é o liberalismo, uma ideia relativamente nova, consolidada no século XVIII, que visa garantir os direitos inalienáveis dos cidadãos e restringir o poder do Estado e dos governantes. Essas duas tradições teriam, finalmente, se encontrado no começo do século XX. Por isso, em uma sociedade democrática, o que conta não é apenas a vontade que a maioria expressa pelo voto, mas também as regras do jogo (que não podem ser mudadas de acordo com a vontade popular) e direitos que não podem ser retirados por plebiscitos. Assim, mesmo que a maioria dos brasileiros decida, por exemplo, que todos os homossexuais devem ser mortos, isso não é possível em um regime democrático, pois certos direitos dos cidadãos não podem ser retirados pelo voto de outros. Segundo Locke, filósofo inglês considerado o pai do liberalismo político, esses direitos não podem ser retirados nem pela própria vontade expressa do indivíduo. Ele elencou três: a vida, a propriedade e a liberdade. Assim, não há legitimidade em um povo que vota para referendar uma ditadura dentro dos marcos de uma democracia-liberal.

 

O que aconteceu com o mundo desde 2006

 

Com essas definições fica um pouco mais fácil de pensarmos o que aconteceu com o mundo desde 2006. Trump, Maduro e Erdogan (o presidente islamista turco), para não falar do russo Putin, chegaram ao poder pelo voto, em eleições mais ou menos justas. Em todos os lugares, prevaleceu a democracia, no seu sentido antigo, ou seja, a vontade da maioria. Trump tem feito bem menos estragos (por enquanto) do que Putin, Maduro, Erdogan e outros fizeram em seus países porque nos EUA ainda prevalece a outra tradição que forma a democracia moderna, o liberalismo limitador do poder da maioria.

Assim, os países democráticos que se tornam ditaduras ao eleger líderes autoritários, o fizeram por neles prevalecer o sentido antigo de democracia, ou seja, o importante é o que desejam os 50% mais 1 dos eleitores. Os EUA não se tornaram e, provavelmente, não se tornarão uma ditadura ao eleger Trump porque nesse país, como em alguns outros poucos, prevalece o sentido moderno da democracia-liberal: vontade da maioria mais restrições ao poder. Essas restrições partem de várias frentes: uma é o consenso social de que todas as pessoas têm certos direitos que não podem lhes serem tirados de forma alguma (os famigerados direitos humanos), outra são as instituições que dividem e balanceiam o poder: um legislativo atuante, um judiciário independente, uma imprensa plural e livre, etc. Em um país assim, ninguém pode concentrar tanto poder para impor sua vontade. Um dos redatores da Constituição Americana, James Madison, se expressou nos seguintes termos:

“Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo. Ao criar um governo que será administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: devemos, em primeiro lugar, capacitar o governo para controlar os governados; e, em seguida, obrigá-lo a controlar-se a si próprio.”

A fórmula de Madison visa que o governo controle a si mesmo a partir de um sistema de freios e contrapesos, inspirado na ideia de separação entre os poderes de outro filósofo, desta vez francês, Montesquieu. É uma fórmula que deu certo, pois os EUA mantêm a mesma constituição (e a democracia) desde 1788. O Brasil, desde a independência, teve 7 constituições. Na próxima coluna, debaterei as possibilidades de sobrevivência da democracia brasileira no caso da eleição de um candidato extremista ou autoritário nas eleições deste ano.