Escola sem Partido ou Escola sem Juízo?

Originalmente publicado em Seguinte: em 05 de Junho de 2018

Ninguém duvida que as ideologias podem obscurecer o nosso entendimento sobre a realidade. Se neutro é aquilo que reflete a verdade, sem distorções advindas de ideologias, então a neutralidade deve ser a meta de qualquer sistema de ensino. Acontece que isso só é possível para o domínio dos “fatos”. Não há neutralidade possível quando falamos de valores, a não ser que caíamos no niilismo e relativismo. Se a educação remete a concepções de bem, precisamos definir quais são os valores que queremos promover – por exemplo, a justiça, a civilidade, a verdade, etc. Os projetos de lei Escola sem Partido fazem exatamente ao contrário, pois definem que o estudante não deve ser submetido a algo que contrarie as crenças e valores dos pais. Não é preciso pensar muito para imaginar aonde isso pode levar: além dos casos óbvios de professores de biologia sendo impedidos de ensinar sobre a evolução para alunos filhos de evangélicos, podemos vislumbrar professores sendo proibidos de ensinar para filhos de bandidos que matar é errado.

Bem, de qualquer forma, defensores mais sensatos de projetos do tipo defendem que se a educação pública deve ser laica em termos religiosos, também o deve ser em termos políticos – evitando favorecer esta ou aquela ideologia. É uma ideia, à princípio, razoável. Porém, a educação laica resolve a questão religiosa simplesmente não a mencionando em sala de aula. Lugar de aprender sobre religião é na catequese, na escola dominical, no centro espírita ou em casa, não na escola. Quando tentamos aplicar o mesmo à política, a situação se torna complicada. Como evitar assuntos políticos em disciplinas como história, geografia e até mesmo ciências (por exemplo, em discussões sobre o aquecimento global, um tema muito sensível do ponto de vista político)? Como falar da crise da Venezuela sem mencionar questões políticas? Dos Blocos Econômicos? Da Globalização? Da Era Vargas? Dos dilemas éticos envolvendo a clonagem humana ou o aborto? É impossível, a não ser que se elimine essas disciplinas e assuntos do currículo – o que empobreceria demasiadamente a formação escolar.

É óbvio que o professor tem um dever moral de não impor suas visões pessoais – que todos têm – aos seus alunos. O sociólogo alemão Max Weber defendeu um ponto de vista muito interessante sobre o assunto em “Ciência e Política: duas vocações”: por mais que o professor tenha convicções sobre um assunto, é seu dever em sala de aula expor as principais posições sobre dado tema. No caso, Weber cita a democracia, um assunto bastante polêmico na época em que ele escreveu (o Império Alemão ainda era governado pelo autoritário Kaiser). Segundo o autor, o professor deve expor as principais definições de democracia, os principais exemplos de cada definição, e os prós e contras do sistema de acordo com seus defensores e detratores. Com essas informações, o aluno terá autonomia intelectual para formar sua posição.

É impossível resolver isso de forma satisfatória com leis, porém. Nessas horas, os políticos “liberais”, autores da maioria desses projetos de lei, deixam de lado a ideia de que a “mão invisível” promoverá a “grande ordem espontânea” e tentam resolver o problema da doutrinação escolar a partir da interferência e regulação estatal. Ocorre que ninguém é capaz de dar uma definição prática do que seja doutrinação e o resultado provável é que ela será definida de acordo com o que o grupo no poder em dado momento não gosta. Basta lembrar do caso recente de Foz do Iguaçu, onde os edis municipais proibiram qualquer menção à palavra “gênero” nas salas de aula da cidade. Além de inviabilizar qualquer discussão sobre assuntos como violência doméstica ou diversidade sexual, um professor de ciências poderia ser punido ao falar dos gêneros taxonômicos de classificação dos seres vivos, ou um professor de literatura poderia enfrentar um processo disciplinar por mencionar os gêneros literários.

Estudantes do ensino médio federal e o PISA. Sucesso explicado pela seletividade social?

Este vai ser um post breve que pretende dar uma movimentada no blog, já que lá se vão sete meses do último post. A recente divulgação do sucesso dos estudantes da rede federal de ensino básico no PISA, comparável a de países desenvolvidos gerou vários debates e considerações sobre a possibilidade de um ensino público de qualidade. Os estudantes federais superam, inclusive, aqueles da rede privada.

Recentemente, o governo federal esqueceu de divulgar os excelentes resultados dos estudantes dos Institutos Federais no ENEM, o que levou alguns a levantar motivos ideológicos para tal omissão.

Eu mesmo, quando divulguei os resultados do PISA, recebi várias críticas de que a rede federal, ao contrário das demais redes públicas, seria extremamente seletiva, o que privilegiaria estudantes com condições socioeconômicas favoráveis, o que, em parte explicaria o resultado.

Bem, são necessários estudos mais detalhados, pois a rede federal seleciona estudantes de diversas formas (provas, sorteio ou privilegia filhos de militares, nos casos dos colégios militares), mas os microdados da PNAD de 2015, que eu analisei hoje, mostram resultados bem interessantes.

Abaixo, eu comparo a origem familiar dos estudantes do ensino médio pela renda per capita domiciliar. Separo os estudantes por quintil de renda familiar. O quintil 1 seriam os 20% mais pobres da população, o quintil 2 os 20% seguintes e assim por diante, até o quintil 5 que representa os 20% de famílias mais ricas.

quintil-em

Os dados nos mostram que a rede federal é muito mais equitativa do que a rede privada, em termos de acesso. As redes municipal e estadual tendem a concentrar os estudantes mais pobres. 30% dos estudantes da rede municipal de ensino médio vêm do estrato mais pobre da população, enquanto apenas 8% provêm do quintil mais rico. Na rede privada, quase metade vem do estrato mais rico e pouco mais de 3% apenas provêm das famílias mais pobres (provavelmente estudantes bolsistas, na maioria). A rede federal, por sua vez, parece representar bem a diversidade econômica das famílias brasileiras. Cerca de 19% dos estudantes vêm das famílias mais pobres, enquanto pouco mais de 21% vêm das mais ricas. Predominam, porém, estudantes do quarto quintil, aqueles que chamaríamos, grosso modo, de classe C, com 25% das matrículas.

A diferença fica mais evidente quando comparamos as medianas (a média é uma má medida de tendência central quando analisamos renda) da renda per capita familiar. Notamos que, apesar de os estudantes das escolas federais terem uma renda familiar um pouco maior do que os estudantes das demais redes públicas, eles são muito mais pobres, em média, do que os estudantes da rede privada.

renda-em

Quando comparamos a idade média dos estudantes das quatro redes notamos, por outro lado, que os estudantes da rede federal têm uma idade menor do que aqueles das outras redes públicas, o que denota menor repetência e atraso escolar. Por outro lado, a média de idade é levemente mais alta do que a da rede privada.

idade

São resultados preliminares, mas que parecem indicar que não é uma condição socioeconômica familiar privilegiada que explica o sucesso dos estudantes da rede federal em relação aos da rede privada. Pelo contrário, eles tendem a vir de de famílias, em média, economicamente bem mais pobres do que os alunos do ensino médio privado.

Quem quer ser professor no Brasil? Uma Investigação.

Uma publicação do ano passado (mas a qual somente li recentemente) do colunista da Veja Gustavo Ioschpe me chamou a atenção. Embora a coluna traga várias informações questionáveis, algumas delas com considerável carga ideológica (como menções à Cuba sem muito contexto), uma delas me chamou a atenção: a de que não há relação entre melhores salários de professores e melhor qualidade no ensino. O argumento é baseado em algumas pesquisas que mostram que a qualidade do ensino não tende a melhorar com o aumento dos salários. Estejam corretas ou não, essas pesquisas, creio que há uma falha metodológica nesses trabalhos: o pequeno lapso temporal testado, geralmente um ano ou dois.

Imagino que, de fato, um salário maior não melhore SIGNIFICATIVAMENTE a qualidade do ensino ofertado pelos professores que já estão na ativa, embora cumpra um papel fundamental em atrair candidatos mais preparados para a carreira docente e estes sim podem melhorar a qualidade do ensino. Eu mesmo fui professor concursado da Rede Estadual do Rio Grande do Sul durante alguns meses, mas as baixas perspectivas da rede me levaram para outros caminhos.

Esta investigação terá três etapas, com os seguintes objetivos: 1) descobrir quem queria ser professor no Brasil em 2009, 2) verificar se houve aumento real no rendimento dos professores desde então, 3) Comparar o perfil dos candidatos daquele ano com candidatos à carreira docente 5 anos depois, em 2014, para entender se houve alguma alteração no padrão, acompanhando ou não os aumentos salariais e comparar isso com dados nacionais e internacionais sobre a qualidade da educação brasileira. Nesta postagem, vamos tentar dar conta apenas do primeiro objetivo.

Quem quer ser professor no Brasil?

Tentarei responder a esta pergunta com a utilização dos dados disponíveis no questionário socioeconômico do ENEM de 2009, que foram os mesmos dados utilizados na minha dissertação, recentemente defendida. O primeiro ponto que chama a atenção é que os candidatos à carreira docente são uma minoria, com cerca de 6% dos candidatos que prestaram o exame, fração bem abaixo dos candidatos a outras profissões. O que é mais grave, porém, é a sua nota média, muito mais baixa do que a de candidatos a carreiras nas áreas de ciências exatas, engenharias, artes, ciências humanas ou biológicas.

nota professoresOs candidatos que pretendem seguir carreira na área de educação também têm uma média de idade bem maior (26 anos) do que a dos demais concorrentes, cuja média de idade varia entre os 21 e 23 anos.

idade professoresEm média, os candidatos que querem seguir na profissão de professor tem uma curva de renda destoante dos candidatos a todas as outras profissões (que possuem curvas de renda muito próximas entre si), com renda familiar menor do que a dos demais candidatos.

RENDA FAMILIAR professoresChama a atenção também que poucos filhos de funcionários públicos, profissionais liberais ou mesmo PROFESSORES pretendem seguir a carreira docente. Enquanto 15% dos pais de candidatos a carreiras nas ciências humanas possuem pais funcionários públicos, entre candidatos que almejam a profissão de professor, essa taxa é de 9%. Se  há 6% de pais profissionais liberais e professores entre candidatos da área de artes, entre candidatos a professores, essa taxa é de 1,7%.

profissão dos pais professoresDa mesma forma, enquanto a curva de escolaridade das mães dos candidatos às demais carreiras é bastante semelhante, chama a atenção que os candidatos a professor vêm de famílias que tem menos contato com o campo escolar que os demais candidatos. escolaridade mães dos professoresUma proporção maior de candidatos a professor estudou integralmente em escolas públicas (quase 90%, contra taxas que variam entre 72% e 76% nas demais carreiras).

escola professores Cabe citar também alguns hábitos de leitura dos candidatos à carreira docente: eles são os que menos leem romances e ficção (com exceção dos candidatos a carreiras nas ciências exatas e engenharias), são os que menos leem revistas de divulgação científica e de informação geral e, ao contrário, são os que mais leem revistas sobre religião, astrologia, etc.

leituras professores    Por fim, trago dados sobre as principais motivações para a escolha da profissão (a soma pode ultrapassar 100% pois era uma questão de múltipla resposta): em comparação com outras profissões, fatores como a facilidade de encontrar emprego depois de formado tiveram destaque positivo, enquanto estímulos financeiros e da mídia foram menores do que para os candidatos à outras profissões.

motivos professores

Antes de qualquer coisa, não quero dizer que candidatos com condições socioeconômicas mais precárias não possam ser excelentes profissionais (meus pais, por exemplo, têm apenas o ensino fundamental e três de meus quatro avós não eram alfabetizados), mas a discrepância entre os dados relativos aos candidatos a professores e os candidatos a outras profissões pode indicar que muitos candidatos escolhem essas carreiras apenas por serem mais fáceis de passar e uma possibilidade objetiva muito mais factível do que outras carreiras. Da mesma forma, candidatos preparados, independentemente de sua condição socioeconômica, podem escolher outras profissões, apesar de preferirem a carreira docente, dadas a pouca valorização social da profissão de professor, o que passa, invariavelmente, pelos baixos salários quando comparados com os salários de outras profissões de nível superior.