O Brasil e a tradição democrática

Originalmente publicado em Seguinte: em 10 de Maio de 2018

Ao contrário do que muita gente imagina, a democracia não é exatamente algo novo no Brasil, posterior ao final da (última) ditadura. No período colonial, as instituições lusitanas do Antigo Regime, o Clero e a Nobreza, tinham muito pouco poder. Assim, uma antiga tradição portuguesa, as câmaras municipais, passaram a ter uma influência muito maior do que tinham na metrópole. Essas câmaras faziam o papel de um governo local (o único que de fato importava na maior parte do território) e eram eleitas por todos os homens livres, mesmo que analfabetos. Para os padrões da época, o Brasil colonial era bastante democrático (como a antiga Aldeia dos Anjos ainda era subordinada à Porto Alegre, a cidade só foi ter sua câmara no tardio ano de 1880. Ainda assim, era comum que gravataienses fossem eleitos para a câmara da capital, como o Coronel Sarmento, que dá nome a uma rua do centro da cidade).

As câmaras eram um exemplo de governo democrático, mas não liberal (assumindo a distinção entre democracia e liberalismo que explico na última coluna no Seguinte:). Com a independência, uma assembleia constituinte foi convocada por Dom Pedro I. Como ele não gostou muito do que estava sendo discutido, que poderia ter levado a uma constituição extremamente liberal para o seu gosto, ele fechou a assembleia com o exército e impôs uma constituição rascunhada por ele e seus auxiliares próximos. A Constituição de 1824 foi a mais duradoura que tivemos (enquanto a Constituição atual está fazendo 30 anos, ela durou 67 anos). Ainda que imposta de cima para baixo sobre a sociedade, esta constituição era bastante democrática para os padrões da época, mesmo que o imperador retivesse muito mais poder do que nas monarquias constitucionais europeias, como a da Inglaterra, por exemplo. Ainda que proclamasse os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, essa primeira constituição nada dizia sobre a escravidão, com a qual conviveu até a abolição de 1888.

Na época, o padrão era que o voto fosse censitário, ou seja, além de ser necessário ser homem, maior de idade e livre, era necessário ter uma renda mínima para votar, 100 mil réis anuais no caso. Essa renda, porém, era bastante baixa e, na prática, qualquer empregado ou pequeno proprietário poderia votar para as eleições parlamentares, seja nas câmaras municipais ou nas assembleias provinciais e imperial, de onde saia o primeiro-ministro, o chefe do poder executivo nos tempos monárquicos. Como não havia, até 1880, restrição ao voto de analfabetos, o Brasil foi um dos países mais democráticos de todo o mundo naquela época, com mais de 20% da população participando das eleições. Na Inglaterra, a proporção era bem menor, de menos de 5%. Enquanto, nos Estados Unidos, muitos negros só puderam votar nos anos 1960, após as campanhas pelos direitos civis, lideradas por Martin Luther King, no Brasil nunca houve nenhuma barreira formal à participação eleitoral de negros livres – tanto é que houve um presidente negro já na República Velha, Nilo Peçanha. A participação eleitoral de analfabetos acabou com a reforma de 1880, que os impediu de votarem (eles compunham, então, cerca de 80% da população). Essa restrição se manteve com a proclamação da república e só foi levantada com a atual constituição (embora, atualmente, os analfabetos sejam cerca de 7% da população).

Após alguma instabilidade inicial, a República proclamada em 1889 manteve uma tradição de eleições periódicas e direitos civis mais ou menos garantidos, pelo menos até a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Assim, durante meio século, o Brasil conviveu com governos mais ou menos autoritários até o final da ditadura militar em 1985, intercalados pelos governos democráticos do que veio a ser chamada, pejorativamente, de República Populista (os governos de Juscelino, Jânio e Jango). Durante esse período de 55 anos, o Brasil teve 4 constituições diferentes. Ainda assim, após a redemocratização, o país reencontrou mais ou menos facilmente o caminho da democracia, o que talvez se explique pelos séculos de tradição colonial de democracia nas câmaras municipais e pelos quase 70 anos de alta participação política no Império.

Collor foi eleito em 1989 e sofreu um impeachment construído sobre um amplo consenso, que abrangeu tanto a direita quanto a esquerda. Após o pequeno trauma dos anos “colloridos”, houve as eleições presidenciais de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010, todas transcorridas sem maiores incidentes, com o presidente eleito assumindo normalmente e sem maior contestação – a oposição, na maior parte das vezes, soube assumir a derrota e reconheceu a legitimidade do lado vencedor. Isso não aconteceu, porém, em 2014. Conforme Celso Rocha de Barros, em artigo na Revista Piauí, as democracias não sobrevivem quando a oposição usa todas as “balas de canhão” contra o “outro lado”, exceto em situações de amplo consenso. Em 250 anos de democracia norte-americana, houve dois processos de impeachment, um devidamente rejeitado (pois baseava-se no fato de Bill Clinton ter recebido ou não sexo oral de uma estagiária) e outro que terminou na renúncia de Nixon antes da sua conclusão. No Brasil, houve dois processos em pouco mais de duas décadas. Se o impeachment de Collor foi baseado em um consenso, o de Dilma não. Para 48% dos brasileiros, Dilma foi vítima de um golpe em 2016.

Sim, o PT pediu o impeachment de todos os presidentes desde Sarney até FHC, mas não teve poder de levar o pedido adiante. Já os tucanos, aliados ao MBL e ao PMDB, conseguiram derrubar Dilma facilmente – embora, obviamente, os próprios erros do governo e as mentiras da campanha de 2014 ajudaram a pavimentar o terreno. Se o impeachment, ou “golpe”, de 2016 traumatizou ou não a democracia brasileira vamos começar a descobrir nas eleições deste ano, de onde pode sair eleito algum candidato extremista e autoritário.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: uma aproximação a partir da economia histórica

O sociólogo alemão Max Weber é reconhecido, dentre outros motivos, pela sua tese sobre as origens do capitalismo. De forma bastante simplificada, ele procurava se contrapor ao materialismo marxista – que acreditava que as estruturas simbólicas de uma sociedade (religião, leis, costumes, etc.) eram determinadas, em última instância, pelo tipo de sistema econômico reinante. Assim, o catolicismo medieval, na visão marxista, era um reflexo das relações econômicas feudais na Europa daquele período. Essa ideologia religiosa (parte da “superestrutura” no linguajar marxista), que coibia o enriquecimento e a cobrança de juros, já não era adequada à estrutura econômica capitalista que começou a tomar fôlego na Europa do século XV em diante . Assim, do ponto de vista marxista, o protestantismo surge como uma resposta da “superestrutura” às novas relações na estrutura econômica. Weber inverte essa tese. Para ele, as ideias possuíam uma autonomia relativa do mundo material da produção e podem, inclusive, determinar este. Para Weber, o verdadeiro capitalismo é fruto da reforma protestante, e não o contrário. Ao valorizar uma ética do trabalho, da frugalidade e do esforço individual, o protestantismo (em suas formas calvinistas principalmente) teria levado ao desenvolvimento econômico dos países norte-europeus (e dos Estados Unidos) que o adotaram.

Personen / Gelehrte / Deutschland / Weber, Max / Szenen

Max Weber, de chapéu em primeiro plano, 1917.

Enquanto navegava no Facebook, porém, acabei me deparando com uma postagem  do ex-astrólogo, católico tradicionalista e filósofo midiático brasileiro, Olavo de Carvalho, que contrapunha a tese weberiana:

Quando ouvirem algum idiota dizer que a Reforma Protestante criou a prosperidade moderna, saibam que estão falando com um analfabeto repetidor de propaganda. A prosperidade das nações protestantes, com a notável exceção da Holanda, só começou na segunda metade do século XIX e veio junto com a onda de ateísmo e cientificismo, não de protestantismo.

Olavo de Carvalho, 2017.

Bem, após alguma discussão sobre o assunto em minha linha do tempo, me dei conta de que nenhum dos debatedores buscava verificar empiricamente o que estavam dizendo. Um dos seguidores do filósofo argumentou sobre a autonomia do pensamento filosófico em relação às demais “disciplinas”, como a Sociologia e a Economia. Ocorre, porém, que Carvalho fez uma afirmação empírica, e afirmações empíricas devem ser avaliadas empiricamente.

Uma forma de avaliar empiricamente as teses de Weber e de Carvalho é através da economia histórica. Apesar de os dados econômicos anteriores ao século XX ainda serem frágeis, sua qualidade vem melhorando, e os dados relativos ao século XIX são relativamente confiáveis, ao menos para a Europa. Assim, busquei as bases de dados da plataforma Gapminder, uma das mais acessíveis plataformas de dados históricos. Nesta plataforma, é possível encontrar dados sobre renda per capita (ajustada pela inflação e pelo poder de compra) desde 1800 para vários países. Assim, utilizei este dado como um proxy  do desenvolvimento capitalista dos países selecionados.

Assim, selecionei os grandes e médios países da Europa Ocidental, e dividi-os em países predominantemente católicos e protestantes. Excluí Alemanha e Suíça, pois ambos os países contam com importantes populações católicas e protestantes e incluí os Estados Unidos, que é um país bastante importante na análise empírica weberiana. Feito isso, compilei os dados de renda per capita em 3 momentos, 1800 (portanto, imediatamente antes do verdadeiro início da Revolução Industrial), 1850 (quando esta Revolução estava em marcha em vários países da Europa e início do período citado por Carvalho) e 1900.

Os resultados com o ranqueamento dos países podem ser encontrado nas três tabelas abaixo:

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Renda per capita (dólares atuais em paridade do poder de compra) – países selecionados, século XIX. Fonte: Gapminder.

Em 1800 (primeira tabela), dos 6 países mais ricos, 4 são protestantes. De fato, o país mais rico era a Holanda, que Carvalho cita como uma exceção), seguido pelo Reino Unido (que já era bastante rico neste momento). A Itália ainda era bastante rica neste período (apesar disso, outros dados históricos mostram que a Itália estava economicamente estagnada desde o século XVI, sendo sua posição relativamente boa em 1800 resquícios de uma época onde sua renda per capita era o dobro da média europeia). O outro país católico entre os mais ricos, a Bélgica, possuía (e possui) uma grande minoria de origem holandesa, muitos deles protestantes. Dentre os países mais pobres, porém, todos são católicos, com exceção dos países nórdicos (que seguiram entre os mais pobres da Europa até o século XX). A pobreza relativas dos países nórdicos (Suécia, Noruega e Finlândia) pode não ter a ver com religião em si, mas com um ambiente natural bastante hostil, em uma região subpolar que só se tornou realmente produtiva a partir dos avanços tecnológicos do século XX. Em um momento em que a maior parte do PIB provinha do setor primário, não é de se estranhar essa renda baixa em uma região como a Escandinávia.

As tabelas seguintes mostram um padrão: o empobrecimento relativo do sul da Europa (Espanha, Itália e Portugal) e da Holanda, e o rápido enriquecimento do Reino Unido e dos Estados Unidos. Não obstante, países predominantemente católicos também cresceram bastante durante o século XIX, principalmente a França, Bélgica e Áustria. De qualquer forma, em todos os períodos, entre os 6 países mais ricos, 4 são protestantes. Entre os mais pobres, todos são católicos, com exceção dos países nórdicos.

Para fins de comparação, a renda per capita do Brasil, atualmente, é de cerca de 15 mil dólares em paridade do poder de compra. Em 1800, esse valor era de cerca de 1100 dólares, 1200 em 1850 e 1500 dólares na virada do século XX. Enquanto no começo do século XIX, podíamos nos comparar aos países mais pobres da Europa ocidental, ao final desse século, o Brasil já havia ficado para trás.

Abaixo, procuramos calcular a média de renda per capita para os países protestantes e católicos para o período. Em todos os anos, os países católicos eram relativamente mais pobres do que os protestantes. Apesar disso, tanto países católicos quanto protestantes aumentaram sua riqueza no período. Enquanto os países católicos cresceram, em média, 23% na primeira metade do século XIX, os protestantes cresceram 28%. Na segunda metade do século, o crescimento foi maior para católicos do que para protestantes: 80%, em média, para os países protestantes e 85% para os países católicos.

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Ou seja, a riqueza relativa dos países protestantes é anterior ao século XIX. Os dados parecem corroborar a tese weberiana. Não obstante, no período citado por Carvalho – a segunda metade do século XIX, países protestantes e católicos tiveram crescimento parecido. Se, no começo do século XX, os países protestantes eram mais ricos do que os países católicos, isso se deveu ao desenvolvimento do capitalismo anterior a 1850 nesses países.

Podemos, obviamente, testar algumas hipóteses. E se retirarmos a exceção – reconhecida por Carvalho – da Holanda, como os dados ficam?

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Excluindo Holanda.

De fato, quando excluímos a Holanda, os países protestantes e católicos passam a ter uma renda bastante parecida em 1800, embora a dos protestantes ainda seja quase 5% maior (o que ainda é significativo quando todos os países ainda eram relativamente pobres. Não obstante, a diferença entre países protestantes e católicos, neste caso, já se torna significativa na primeira metade do século XIX, e não na segunda, como postula Olavo.

Por outro lado, além de excluirmos a exceção holandesa, também podemos excluir os casos dos países nórdicos – cujo ambiente natural pouco propício num momento de ausência de tecnologia moderna – pode estar distorcendo os dados.

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Excluindo Holanda e países nórdicos (Suécia, Noruega e Finlândia)

Após eliminarmos os países mencionados do cálculo das médias, as diferenças no desenvolvimento econômico entre países católicos e protestantes passam a ser bastante significativas já no começo do século XIX. Neste momento, países protestantes já eram 36% mais ricos do que os países católicos, o que parece denotar um desenvolvimento capitalista já anterior ao século XIX – entre a Reforma e a Revolução Industrial – o que parece confirmar a tese weberiana e refutar a de Carvalho.

Por fim, retornando aos dados compilados por Maddison (2007), citados acima, podemos ter uma ideia sobre o desenvolvimento econômico por região, anteriormente ao século XIX. Selecionei alguns dos países já mencionados aqui, além de civilizações antigas da Ásia, como Índia e China, bem como o Brasil, para fins de comparação. Os valores são um pouco menores do que os da plataforma Gapminder, pois estão em dólares de 1990.

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O caso da Itália é bastante interessante. Após um empobrecimento após a queda do Império Romano (empobrecimento compartilhado por toda a Europa na alta Idade Média), teve um forte crescimento na baixa Idade Média – provavelmente graças ao comércio das repúblicas marítimas de Gênova e Veneza – ela se manteve estagnada desde o século XVI. Os demais países europeus também tiveram taxas mais modestas de crescimento na baixa Idade Média, enquanto Índia e China, as grandes civilizações do Oriente, se mantiveram praticamente estagnadas desde o período da Idade Média europeia. Após a Reforma (século XVI), notamos um padrão bastante distinto para países protestantes e católicos. Apesar de os países católicos (Portugal, Espanha e França) terem crescido durante a Idade Moderna, os países protestantes selecionados (Holanda, Reino Unido e, posteriormente, os EUA) tiveram taxas de crescimento muito superiores. Assim, quando a Revolução Industrial começa, no século XIX, os países protestantes já são bem mais ricos do que seus congêneres católicos. Esse desenvolvimento diferencial, iniciado com a Reforma, confirma, assim a tese de Max Weber.