A Idealização do Passado e a Dissonância Cognitiva

Uma característica praticamente universal das sociedades humanas é a idealização do passado: o presente é sempre visto como um momento de declínio em relação a uma época dourada. Nossa sociedade moderna não escapa a isso e lamentações sobre o declínio do presente em relação ao passado podem ser rastreadas em praticamente todas as gerações intelectuais pelo menos até o Império Romano. Tal visão pode ser encontrada em praticamente todas as cores do espectro ideológico, mas atinge um grau mais elevado entre conservadores, na direita, e o que se tem chamado de “nova esquerda” ou esquerda “pós-moderna”. Geralmente, o passado é pintado com cores idílicas, um tempo em que os laços familiares e comunitários, valores morais e religiosos, uma alimentação mais saudável, um contato maior com a natureza e um trabalho menos alienante, uma cultura erudita ou popular autêntica, livre da cultura de massa criticada tanto por tradicionalistas de direita quanto por esquerdistas da Escola de Frankfurt, supostamente, permitiriam aos indivíduos o usufruto de uma vida mais significativa. Dependendo do ponto de onde vem a crítica, se culpa o capitalismo, a modernidade ou a liberalização dos costumes pela destruição desse belo cenário.

Apesar de quase sempre poder ser refutada pela reconstituição histórica e análise de dados empíricos de todo o tipo, quando tem algum fundo de verdade, essa visão se baseia na vida de uma minoria de ricos, esquecendo-se da dura vida da imensa maioria de pobres e da quase inexistente classe média.

Uma das passagens mais significativas que tratam da incompletude de qualquer idealização do passado é a que traduzo abaixo, do livro The Rational Optimist:

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Na metade do atual século, a espécie humana terá se expandido, ao longo de dez mil anos, de menos do que 10 milhões de indivíduos para algo próximo a 10 bilhões. Alguns destes bilhões ainda vivem na miséria e alguns sofrem tanto quanto os piores sofrimentos experimentados na Idade da Pedra. Alguns estão pior do que estavam a alguns meses ou anos atrás. Mas, a vasta maioria das pessoas é muito melhor alimentada, muito melhor abrigada, tem muito mais diversão a seu dispor, é muito mais protegida contra doenças e tem uma probabilidade muito maior de viver até a idade avançada do que seus ancestrais tiveram. A disponibilidade de quase tudo que uma pessoa pode querer ou necessitar cresceu continuamente nos últimos 200 anos e de forma errática ao longo de 10.000 anos antes disso: anos de vida, água limpa, ar puro, horas de privacidade, meios de viajar mais rapidamente do que você pode correr, meios de se comunicar mais longe do que você pode gritar. Mesmo levando em conta as centenas de milhões que vivem em pobreza abjeta, doença e necessidade, esta geração de seres humanos tem acesso a mais calorias, watts, horas de luz, metros quadrados, gigabytes, megahertz, anos-luz, nanômetros, toneladas por hectare, quilômetros por litro, “milhas de comida” (nota do editor: a distância média percorrida pela comida da produção até chegar ao seu prato), milhas aéreas e, claro, mais dólares do que qualquer geração anterior. Ela tem mais velcro, vacinas, vitaminas, calçados, cantores, novelas, processadores de frutas, parceiros sexuais, raquetes de tênis, misseis teleguiados e tudo o mais que se possa imaginar. De acordo com algumas estimativas, você pode comprar mais de 10 bilhões de produtos diferentes em Londres ou Nova Iorque.

Isso nem precisaria ser dito, mas é necessário. Há muitas pessoas hoje em dia que pensam que a vida era melhor no passado. Elas argumentam que não havia apenas simplicidade, tranquilidade, sociabilidade e espiritualidade no passado, valores que foram perdidos, mas virtude também. Essa nostalgia cor-de-rosa, preste atenção, é geralmente restrita aos mais ricos. É mais fácil render elogios à vida de um camponês quando você não precisa se limpar com sabugos.

Bem, até aqui, você poderia pensar que o progresso foi apenas material, em termos de consumismo, mas o progresso vai muito além disso, tocando diretamente aquilo que Amartya Sen chamou de capacidades, as nossas liberdades negativas e positivas que podem nos garantir uma vida plena.

Imagine-se em 1800, em algum lugar da Europa Ocidental ou do leste da América do Norte. A família está reunida em sua casa simples de madeira. O pai lê a bíblia em voz alta, enquanto a mãe prepara a refeição com carne e cebolas. O bebê recém-nascido está sendo embalado por uma de suas irmãs e o rapaz mais velho está despejando água de um jarro nas canecas de barro sobre a mesa. A sua irmã mais velha está alimentando o cavalo no estábulo. Lá fora, não há barulho de trânsito, não há traficantes de drogas e nem dioxinas ou radioatividade são encontradas no leite de vaca. Tudo é tranquilo e um passarinho canta do lado de fora da janela.

Por favor! Lembre-se que essa é uma das famílias mais remediadas do vilarejo, a leitura das Escrituras pelo pai é interrompida por uma tosse seca que pressagia a pneumonia que vai matá-lo com 53 anos – no que não é ajudado pela fumaça de madeira verde do fogo. (Ele tem sorte, a expectativa de vida era de menos do que 40 anos mesmo na Inglaterra, a mais desenvolvida nação de então). O bebê vai morrer da varíola que agora está o fazendo chorar. Sua irmã, em breve, se tornará propriedade de um marido bêbado. A água que o garoto está despejando nas canecas tem o gosto das vacas que bebem no riacho. A mãe é torturada pela dor de dente. O empregado do vizinho está engravidando a outra menina sobre a palha do estábulo neste exato momento e a sua criança será enviada a um orfanato. O ensopado preparado pela mãe é cinza e cartilaginoso e a carne que comem hoje é uma rara mudança do mingau de aveia cotidiano. Não há frutas ou saladas nesta estação. Para comer, os membros da família se valem de uma colher de madeira e de uma tigela do mesmo material. Velas custam muito caro, assim, todos comem à luz do fogo. Ninguém na família nunca viu uma peça, pintou um quadro ou ouviu um piano. A escola se resume a poucos anos de latim enfadonho ensinado por um sacristão fanático na Paróquia. O pai visitou a cidade uma única vez, mas a viagem lhe custou os rendimentos de uma semana e os outros membros da família nunca viajaram mais do que 20 quilômetros de sua casa. Cada filha possui dois vestidos, duas camisas de linho e um par de sapatos. O casaco do pai lhe custou um mês de salário, mas agora está infestado por piolhos. As crianças dormem de duas em duas em colchões de palha no chão. Quanto ao passarinho que canta lá fora, amanhã ele será caçado e comido pelo menino.

Se a minha família fictícia não é do seu gosto, talvez você prefira estatísticas. Desde 1800, a população do globo multiplicou-se por seis, enquanto a expectativa de vida média mais do que dobrou e a renda real das pessoas cresceu mais de 9 vezes em média. Tomando-se um período de tempo menor, em 2005, comparado com 1955, o ser humano médio do Planeta Terra ganhava cerca de três vezes mais (corrigido pela inflação), comia um terço a mais de calorias de comida, perdia três vezes menos de seus filhos para a mortalidade infantil e podia esperar viver um terço a mais. Ele tinha menos chances de morrer em resultado da guerra, assassinato, parto, acidentes, tornados, enchentes, fome, coqueluche, tuberculose, malária, difteria, tifo, febre tifóide, sarampo, varíola, escorbuto ou poliomelite. Ele tinha menos chances, em qualquer idade, de ter câncer, doenças do coração ou derrames. Ele tinha muito mais chances de ser alfabetizado e de ter concluído a escola. Ele tinha muito mais chances de ter um telefone, um banheiro com água corrente, uma geladeira e uma bicicleta. Tudo isto durante meio século no qual a população mais do que dobrou, e longe de estarem sendo racionados devido à pressão populacional, os bens e serviços disponíveis para as pessoas no mundo têm se expandido. Isso foi, por qualquer critério, uma surpreendente realização humana.

Se você ainda acha que tal descrição do progresso humano é demasiadamente material, em um próximo post, abordarei a questão do progresso moral.