Ainda sobre machismo e o ministério de Temer: addendum

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Gabinete de Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, no final dos anos 70.

O nosso recente texto  sobre o ministério de Michel Temer provocou uma série de questionamentos (dentre eles alguns ataques grosseiros de defensores do atual governo) sobre a metodologia que nós adotamos e sobre possíveis falhas de interpretação. Apesar de tudo, dois deles, em específico são interessantes e merecem resposta, vamos a eles.

Os partidos dos deputados deveriam ter sido levados em conta.

Este questionamento parte do pressuposto de que as mulheres se concentram nos partidos de esquerda, que votaram, em geral, contra o impeachment, e, logo, não teriam espaço no gabinete do ministério Temer naturalmente . Bem, eu já havia pensado nisso quando fiz o cálculo original, mas não vi nisso um motivo para alterar a análise, visto que não há muitas diferenças entre a composição por gênero de diferentes partidos do ex-governo e da ex-oposição (por exemplo, o PSDB tem 9,6% de deputadas mulheres contra 11,6% no PT). De qualquer forma, refiz os cálculos excluindo dos deputados os quatro partidos que orientaram o voto contra o impeachment (PT, PDT, PCdoB e PSOL).

temer 2 - observado

Como podemos observar, dos 418 deputados dos partidos restantes, 37 são mulheres. Agora, calculando os valores esperados, chegamos aos seguintes resultados (valores arredondados para exibição):

temer 2 - esperado

Aplicando a fórmula do qui-quadrado, obtemos um valor de 2,28, quase idêntico ao valor anterior, cujo cálculo não fazia o controle por partido. Este valor nos dá a mesma probabilidade de 87% de alguma ligação entre gênero e escolha dos ministros. Entretanto, assim como frisei no post anterior, este valor está abaixo do valor de ouro estatístico  de 95% de probabilidade. De qualquer forma, esse segundo cálculo nos permite afirmar que não é a ausência de mulheres nos partidos de sua base em comparação com o parlamento em geral que está levando à ausência de mulheres em seu ministério. Vamos agora à segunda objeção.

O gabinete de Thatcher, uma das mulheres mais poderosas do século XX, não tinha nenhuma mulher.

Como a foto que abre esta postagem demonstra, o gabinete da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher (1979-1990) também era totalmente masculino. Apesar das divergências dentro da “teoria feminista” sobre se mulheres podem ou não ser machistas, soaria estranho acusar uma das mulheres mais “empoderadas” do século XX de “machista”. Bem, acontece que a participação feminina na política britânica do final dos anos 70 era ainda mais restrita do que a atual participação de mulheres na política brasileira. Infelizmente, os dados do Banco Mundial vão apenas até 1990, mas neles podemos ver a evolução da participação de mulheres nos parlamentos brasileiro e britânico nas últimas duas décadas.

mulher

No gráfico acima, notamos que tanto Brasil quanto Reino Unido tinham uma participação feminina na política bastante parecida no início dos anos 90, mas enquanto a deste país deu um salto naquela década, a brasileira cresceu muito mais devagar. Felizmente, achei esta matéria do jornal inglês The Guardian, com uma série de estatísticas sobre a composição da Câmara Baixa britânica (colocar no cálculo a hereditária e aristocrática Casa dos Lordes seria covardia) desde 1979, o ano inaugural da Dama de Ferro. Assim, descobrimos que, em 1979, mulheres eram apenas 3% da Câmara dos Comuns. Com este número, podemos aplicar o mesmo critério que aplicamos a Temer e Dilma à Thatcher e calcular o quanto a ausência de mulheres no gabinete desta última pode ser explicado pela ausência de mulheres no parlamento britânico de 1979 (uma realidade que eles deixaram para trás faz tempo, ao contrário de nós).

thatcher - observado

Os valores esperados, aplicando o mesmo critério dos casos anteriores seriam os seguintes: thatcher - esperado

Como podemos notar, podia-se esperar apenas uma mulher no gabinete de Thatcher. Assim, podemos calcular se essa diferença entre uma mulher esperada e nenhum observada pode ser atribuída, de alguma forma, a alguma discriminação de gênero.

Aplicando a fórmula do qui-quadrado ao gabinete de Thatcher, chegamos ao valor de 1,27, que por sua vez, nos dá uma probabilidade de relação de 74%, um valor bem mais distante do critério de 95% (ou 90% tomando-se um critério de p<0.1) do que os 87% encontrados no cálculo sobre o gabinete de Temer e um tanto mais próximo de uma probabilidade de 50%, um valor que não nos diz nada, visto é a probabilidade que uma moeda tem de dar “cara” ou “coroa” após ser jogada para cima (ou ainda, a probabilidade de um macaquinho acertar a resposta, caso perguntássemos para ele se existe relação ou não).

Bem, com isso, creio que a análise pela qual fui atacado continua válida, apesar de ser uma aproximação que está longe de se pretender definitiva.

 

 

PS: Ao contrário do que afirmamos no post anterior, este não foi o primeiro governo desde a redemocratização a estrear sem mulheres. Os governos de Sarney (1985) e Itamar Franco (1992) também o fizeram. Apesar disso, é de se notar que apenas os três governos não eleitos da Nova República tiveram gabinetes inaugurais compostos apenas por homens. E, CURIOSAMENTE, todos eles eram do PMDB. 

 

Post Inaugural: A miopia do novo conservadorismo universitário brasileiro.

Um dos fenômenos recentes do meio universitário brasileiro é o surgimento de grupos e ideias geralmente classificados como “de direita”. Até entendo isso como uma possível reação natural e saudável à hegemonia de grupos e valores geralmente classificados como “de esquerda” (ou melhor dizendo, de extrema-esquerda) em muitos dos ambientes das universidades brasileiras, grupos esses que geralmente estão em algum ponto de um continuum entre o trotskysmo de 1920 e o anarquismo pós-moderno irracionalista. Bem, se quase ninguém dá bola para esses últimos, os primeiros conseguiram, dentre outras coisas, colocar um de seus mais expoentes líderes na primeira suplência da Assembleia Legislativa do RS, com mais de 30 mil votos. Ora, sou um defensor da racionalidade e do bom senso, um centrista social democrata (nos EUA seria o que chamam de liberal) e me preocupa a substituição de um radicalismo por outro. Essa nova direita, quase sempre, tem como fundamento uma teoria econômica arcaica (sem nenhum critério de cientificidade, que assim como a alquimia se baseia em deduções apriorísticas), um ex-astrólogo conspiracionista e um economista “liberal” que vê comunismo no logotipo da copa do mundo e se lamenta pela “ausência de machos”. Essa turma consegue escrever sandices como a de que o Império Brasileiro era uma potência econômica (notem que eles conseguem fazer um pout pourri de teorias políticas as mais incompatíveis possíveis, como o anarco-capitalismo e o monarquismo, para dar um exemplo), quando, na verdade, nossa renda per capta e expectativa de vida, na época, eram baixas mesmo para padrões latino americanos (em 1860, a renda per capta da Bolívia era de 1009 dólares atuais e sua expectativa de vida era de 33 anos, no Brasil os valores eram de 650 dólares e 32 anos; no Paraguai, a renda per capta era de 950 dólares e a expectativa de vida estava em 36 anos).

Tendo isso em vista, não fiquei muito surpreso quando me deparei, em minha timeline do Facebook, com o seguinte post:

miss randO Miss Rand, perfil autor da postagem,  é uma espécie de confraria porto-alegrense de seguidores da escritora americana Ayn Rand, que reúne anarcocapitalistas, monarquistas e conservadores radicais, dentre outros. Eu até gosto do Scruton quando ele fala de estética e arte, mas nessa frase ele foi bem infeliz (pode ser que esteja fora de contexto, mas o que importa é a ideia que o grupo quis passar).  Não vou me focar muito na questão dos operários, pois eles dirão que foi o desenvolvimento capitalista que propiciou melhores condições de vida em relação às 16 horas de trabalho extenuante nas fábricas insalubres do século XIX. Sem dúvida, a afluência das sociedades social-democratas só foi possível com o desenvolvimento capitalista, mas muito provavelmente, esse desenvolvimento capitalista tal como o conhecemos só foi possível graças aos níveis sem precedentes de igualdade real e formal (muito mais do que nos regimes comunistas, modelos de igualdade para a esquerda) que esse modelo gerou.

Sobre a questão das mulheres e dos animais (algo me diz que conservadores veem todas essas categorias de maneira semelhante), vou tratar agora. Ora, um dos muitos efeitos de a “esquerda” ter tomado as mulheres como “uma vítima a ser resgatada” foi a diminuição por mais da metade da aprovação social da violência doméstica. No Brasil, só recentemente foi aprovada a Lei Maria da Penha, não por acaso criticada pelos conservadores como um privilégio (algo semelhante ao que dizem ser a criminalização da homofobia ou do já criminalizado racismo). Os gráficos abaixo são da genial obra do psicólogo e linguista canadense Steve Pinker, que traz novo fôlego à teoria sociológica do processo civilizador (que será assunto de um próximo post).

violência doméstica

Essa mudança no zeitgeist não se traduziu apenas em intenções, mas também em ações concretas. Se a violência em geral declinou na sociedade americana desde os anos 1970 (algo que também trataremos no post sobre o processo civilizador), uma categoria especial de violência declinou mais rapidamente ainda, a dos estupros. violência doméstica

O declínio da violência doméstica é ainda mais brutal, ainda mais levando em conta que, no passado, havia muito menos interesse em registrar tais ocorrências. violência doméstica

Valeu a pena, não? Um mundo onde as pessoas podem ter menos medo não garante uma vida mais plena e de maior liberdade?

Sobre os tais “direitos dos animais” vou me ater brevemente. Muito mais do que uma “vitimização da esquerda”, eles são um efeito da expansão de nosso círculos de empatia. Somos dotados naturalmente da capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, algo reforçado pela biologia com a recente descoberta dos neurônios espelho. Embora sejamos dotados dessa capacidade, foi preciso que certas instituições e valores culturais se desenvolvessem para que o círculo daqueles com os quais nos identificamos pudesse ser expandido. Primeiro foram nossos parentes, depois a tribo, a nação, a etnia e, por fim, toda a humanidade. Recentemente, agora que nos demos conta que muitos animais possuem basicamente os mesmos sentimentos que nós (e que também somos apenas mais um mamífero complexo), essa empatia transborda para outras espécies. Por mais que os conversadores se irritem com isso, este é o resultado “natural” do desenvolvimento intelectual humano.

Para fechar, vou falar da última grande “vítima” de acordo com os neocons do Miss Rand, o planeta. Longe de ser uma preocupação tipicamente da “esquerda”, a temática ambiental só muito recentemente passou a ser um assunto político. A esquerda social democrata tradicional não se preocupava com o meio ambiente, pois um melhor padrão de vida estava acima de qualquer preocupação ambiental. Já quanto ao comunismo, nem se fala. Os soviéticos conseguiram transformar um mar em um deserto de sal poluído, numa das maiores tragédias ambientais da humanidade. Pouca gente sabe, porém, que uma das grandes personalidades a trazer à tona o debate sobre o aquecimento global foi a britânica Margaret Thatcher, a “dama de ferro”, tão reverenciada pela nova (e velha) direita da qual trata a postagem. Ela foi uma das únicas lideranças do século XX com formação em ciências naturais (para se ter uma ideia, diz-se que o último presidente americano com formação científica foi Thomas Jefferson). Com sua formação em química, ela estava consciente dos riscos para a humanidade da mudança climática e sabia ler os documentos científicos produzidos sobre o tema, ao contrário da maioria dos conservadores, que, assim como os pós-modernos, tem ojeriza à ciência.

Como se vê, talvez fosse o caso de a nova direita intelectual brasileira conhecer um pouco mais da trajetória das pessoas nas quais ela diz se inspirar.