Yvonne Maggie e o extremismo dos coletivos universitários

Universidade é uma das instituições mais exitosas da civilização ocidental. Surgida na Idade Média, atingiu sua forma atual no começo do século XIX, com o modelo humboldtiano alemão. Ela tem este nome – universidade – porque busca contemplar a universalidade do conhecimento humano: artes, teologia, filosofia, ciências formais e ciências empíricas.

O sucesso da Universidade deveu-se a um valor arduamente conquistado: a liberdade de expressão. Não mais a tradição, não mais a palavra da autoridade, não mais as convenções sociais. O saber, agora, respeitaria apenas três autoridades: a razão lógica, a experimentação empírica e a livre troca de ideias entre pares em uma esfera pública acadêmica.

(…)

Leia o restante do meu artigo no Ano Zero.

 

“Não sei, sou de humanas”: cursos universitários e grupos ideológicos

Um dos grandes motivos de discussões acaloradas no Facebook, juntamente com as discussões entre “coxinhas” e “petralhas”, “biscoito” e “bolacha” é a briga entre “humanas” (a categoria nativa parece incluir apenas o “núcleo duro” das humanas, além de algumas sociais aplicadas, como jornalismo e, por vezes, direito) e “exatas” (qualquer curso que tenha cálculo, mesmo que seja, epistemologicamente, tão de “humanas”, quanto os cursos dos CFHs da vida, como administração e economia). Na minha universidade, a UFRGS, um dos momentos do ano onde essas rivalidades extrapolam o Facebook e chegam aos corredores é a anual eleição do diretório central dos estudantes (DCE). Há cerca de 10 anos, o DCE da UFRGS é disputado por grupos ligados ao direitista PP e ao esquerdista PSOL, sendo que, na maioria dos anos, o PSOL vence, embora tenham ocorrido algumas vitórias da chapa do PP, como em 2009 e 2013. Cabe mencionar também que as eleições são marcadas por acontecimentos dignos da República Velha, como corredores poloneses em torno das urnas, militantes armados com bastões, roubos de urnas e de atas, dentre outras incivilidades. Não por acaso, as eleições também são chamadas de “gincanas” eleitorais e a imensa maioria dos estudantes, por vezes, quase 90%, não participa das votações, dado o baixo nível geral das campanhas.

Bem, neste ano concorreram 5 chapas, sendo elas ligadas aos seguintes grupos:

Chapa 1: Partido Comunista Revolucionário (PCR) e PCB.

Chapa 2: Coletivo Barricadas (uma dissidência do PSOL)

Chapa 3: PT e PCdoB

Chapa 4: PP (o deputado estadual gaúcho, Marcel Van Hatten, fez carreira política no movimento estudantil da UFRGS)

Chapa 5: PSOL e PSTU (situação).

A chapa 5 foi reeleita e os resultados podem ser consultados aqui.

Não foi para falar de eleição de DCE, porém, que eu escrevo esta postagem, mas sim para, a partir dos resultados das diferentes chapas nas urnas de cada curso, tentar entender o perfil ideológico da universidade. O tipo de dado resultante dessa eleição, separado por urna de curso, se presta a um tipo de análise chamada “analise fatorial”. A ideia da análise fatorial é reduzir um conjunto de variáveis quantitativas (os votos de cada chapa por urna, por exemplo) em um conjunto menor de variáveis (chamados de “fatores”), seja como um fim em si mesmo (por exemplo, como faremos aqui, entendendo como elas se agrupam) ou então para facilitar seu uso em uma regressão (neste caso, ao invés de termos, digamos, umas 30 variáveis, teríamos só 2 ou 3, o que torna a análise mais fácil e intuitiva).

Essa análise requer uma série de passos e pressupostos que não irei desenvolver aqui, onde me focarei em entender os resultados. Inicialmente, faremos uma análise fatorial utilizando as chapas como variáveis e as urnas como casos, temos as 6 variáveis (as 5 chapas e os votos em branco) agrupados da seguinte forma:

fatores chapas

Votos nulos foram excluídos por questões técnicas (comunalidade)

Notem que um dos fatores criados foi o que eu chamei de “extrema-esquerda”, agrupando as três chapas de extrema (PSOL, Barricadas e PCB), enquanto outro agrupa as chapas do PP e do PT, além dos votos em branco. Achei interessante este resultado, pois demonstra que os estudantes que votam em chapas do PP também podem votar em chapas do PT, e vice-versa, apesar das distâncias ideológicas entre os dois partidos foram da universidade. Por isso resolvi chamar esse fator de “centrão”, para identificar aqueles estudantes interessados em propostas mais “pragmáticas” e menos na “luta” defendida pelas chapas de extrema-esquerda.

De forma gráfica, esses fatores podem ser visualizados da seguinte maneira: chapas1

A primeira coisa que chama a atenção é a enorme proximidade entre as chapas de extrema esquerda, muito maior do que a proximidade entre as chapas do fator “centrão”. Isso indica que elas disputam exatamente os mesmos votos. Inclusive, a chapa do PT está a cerca de um terço do caminho entre as chapas do PP e as chapas de extrema-esquerda. A inclusão dos votos em branco neste fator parece indicar que os estudantes que tendem a votar em branco são também aqueles menos interessados em votar nas eleições do DCE, menos interessados na “luta” e mais em “propostas pragmáticas”, o que parece ser o caso da maioria dos eleitores das chapas do PP e do PT, em menor grau.

Após verificarmos como as chapas se agrupam, vamos entender como isso acontece com os cursos. Neste caso, tomando as chapas como casos e os cursos / urnas como variáveis, chegamos a três fatores:

fatores urnas

Urnas excluídas por questões estatísticas: farmácia (comunalidade), FABICO, Prédio do cálculo/prédio novo do IFCH, Direito e Administração (“estrutura complexa”).

Neste caso, os fatores representaram três agrupamentos ideológicos de cursos:

  1. Cursos que tendem a votar na extrema-esquerda: anexo da saúde (psicologia, comunicação), educação física, fisioterapia e dança, teatro, biologia marinha, matemática, enfermagem, odontologia, física, letras, química, artes e educação, além das “true humanas” (filosofia, ciências sociais e história), claro.
  2. Cursos que tendem a votar na chapa do PP (centrão 1): informática e engenharias.
  3. Cursos que tendem a votar na chapa do PT (centrão 2): primeiros semestres dos cursos da saúde, economia, veterinária e arquitetura.

De forma gráfica, podemos visualizar esses agrupamentos ideológicos da seguinte forma: urnas1

Pelo menos tomando por base esses dados, parece que a separação “ideológica” entre os cursos não segue exatamente a divisão humanas / exatas (mesmo se entendermos essa dicotomia em sua categoria nativa de cursos sem e com cálculo), mas é mais complexa. Apesar de os cursos onde a chapa do PP vença sejam de exatas, a extrema esquerda também vence em vários cursos dessa área, como química e matemática, além de vencer em quase todos os cursos da saúde.

Uma sociologia dos estudantes de ciências humanas (por Bourdieu, em Os Herdeiros).

Segue abaixo uma longa citação retirada da magnífica obra de Bourdieu e Passeron, Os Herdeiros: os estudantes e a cultura, hoje um clássico da sociologia. O contexto é a França dos anos 60, mas muitas coisas me parecem praticamente iguais no contexto brasileiro atual, pelo menos no que pude presenciar ao longo dos anos de minha curta trajetória acadêmica.

herdeiros sociologia

Numa população de estudantes, não se aprende mais que o resultado final de um conjunto de influências decorrentes da origem social e cuja ação exerce-se há muito tempo. Para os estudantes originários das classes baixas que sobreviveram à eliminação, as desvantagens iniciais evoluíram, o passado social transformando-se em passivo escolar pelo jogo de mecanismos de substituição, tais como as orientações precoces e frequentemente mal informadas, as escolhas forçadas ou as repetências. Por exemplo, num grupo de estudantes da faculdade de letras, a proporção de estudantes de Latim no secundário varia de 41% para os filhos de operários e agricultores a 83% para os filhos de quadros superiores e membros de profissões liberais, o que é suficiente para mostrar a fortiori (tratando-se de literatos) a relação que existe entre origem social e os estudos clássicos, com todas as vantagens escolares que estes proporcionam. Pode-se reconhecer um outro indício da influência do meio familiar no fato de que a parcela de estudantes que diz ter seguido o conselho de suas família para a escolha de uma seção na primeira ou na segunda parte do bacharelado cresce ao mesmo tempo que se eleva a origem social, ainda que o papel do professor decresça paralelamente.

Observam-se diferenças análogas em relação ao ensino. Seja porque eles aderem mais fortemente à ideologia do dom, seja porque creem mais fortemente em seu próprio dom (ou nos dois juntos), os estudantes de origem nas classes altas, reconhecendo tão unanimemente quanto os outros a existência de técnicas de trabalho intelectual, testemunham um maior desdém àquelas que são tidas como incompatíveis com a imagem romântica da aventura intelectual, como a posse de um fichário ou de uma agenda. Não há modalidades sutis de vocação ou de condução dos estudos que não revelem o caráter gratuito do engajamento intelectual nos estudantes das classes altas. Enquanto, mais seguros de suas vocações ou de suas aptidões, estes exprimem seu ecletismo real ou pretendido e seu diletantismo mais ou menos frutuoso pela grande diversidade de seus interesses culturais, os outros revelam uma maior dependência em relação à universidade. Quando se pergunta aos estudantes de sociologia se prefeririam dedicar-se ao estudo de sua própria sociedade, dos países do terceiro mundo ou à etnologia, percebe-se que a escolha dos temas e dos terrenos “exóticos” torna-se mais frequente à medida que a origem social eleva-se. Da mesma maneira, se os estudantes mais favorecidos voltam-se  com mais naturalidade às ideias em moda (vendo, por exemplo, nos estudos  das “mitologias” o objeto por excelência da sociologia), não é apenas porque a experiência protegida que conheceram até então os predispõe a aspirações que obedecem ao princípio do prazer mais que ao princípio da realidade e porque o exotismo intelectual e a boa vontade formal representam o meio simbólico, isto é, ostentatório e sem consequências, de liquidar uma experiência burguesa exprimindo-a? Para que esses mecanismos intelectuais possam se formar, não é preciso que sejam dadas – e durante muito tempo – as condições econômicas e sociais da liberdade e da gratuidade das escolhas?

Se o diletantismo na condução dos estudos é particularmente o feitio dos estudantes de origem burguesa, é porque, mais seguros quanto à manutenção de um lugar, mesmo fictício, ao menos numa disciplina de refúgio, eles podem, sem risco maior, manifestar um desinteresse que supõe precisamente uma maior segurança: eles leem menos as obras diretamente ligadas a seu programa e as obras menos escolares; eles são sempre os mais numerosos a fazer estudos múltiplos e a valorizar disciplinas distanciadas ou de faculdades diferentes; eles são sempre os mais inclinados a se julgar com indulgência, e essa maior complacência, que a estatística dos resultados escolares denuncia, assegura-lhes em muitas situações, a oral por exemplo, uma vantagem considerável. (pp. 30-32)

Post Inaugural: A miopia do novo conservadorismo universitário brasileiro.

Um dos fenômenos recentes do meio universitário brasileiro é o surgimento de grupos e ideias geralmente classificados como “de direita”. Até entendo isso como uma possível reação natural e saudável à hegemonia de grupos e valores geralmente classificados como “de esquerda” (ou melhor dizendo, de extrema-esquerda) em muitos dos ambientes das universidades brasileiras, grupos esses que geralmente estão em algum ponto de um continuum entre o trotskysmo de 1920 e o anarquismo pós-moderno irracionalista. Bem, se quase ninguém dá bola para esses últimos, os primeiros conseguiram, dentre outras coisas, colocar um de seus mais expoentes líderes na primeira suplência da Assembleia Legislativa do RS, com mais de 30 mil votos. Ora, sou um defensor da racionalidade e do bom senso, um centrista social democrata (nos EUA seria o que chamam de liberal) e me preocupa a substituição de um radicalismo por outro. Essa nova direita, quase sempre, tem como fundamento uma teoria econômica arcaica (sem nenhum critério de cientificidade, que assim como a alquimia se baseia em deduções apriorísticas), um ex-astrólogo conspiracionista e um economista “liberal” que vê comunismo no logotipo da copa do mundo e se lamenta pela “ausência de machos”. Essa turma consegue escrever sandices como a de que o Império Brasileiro era uma potência econômica (notem que eles conseguem fazer um pout pourri de teorias políticas as mais incompatíveis possíveis, como o anarco-capitalismo e o monarquismo, para dar um exemplo), quando, na verdade, nossa renda per capta e expectativa de vida, na época, eram baixas mesmo para padrões latino americanos (em 1860, a renda per capta da Bolívia era de 1009 dólares atuais e sua expectativa de vida era de 33 anos, no Brasil os valores eram de 650 dólares e 32 anos; no Paraguai, a renda per capta era de 950 dólares e a expectativa de vida estava em 36 anos).

Tendo isso em vista, não fiquei muito surpreso quando me deparei, em minha timeline do Facebook, com o seguinte post:

miss randO Miss Rand, perfil autor da postagem,  é uma espécie de confraria porto-alegrense de seguidores da escritora americana Ayn Rand, que reúne anarcocapitalistas, monarquistas e conservadores radicais, dentre outros. Eu até gosto do Scruton quando ele fala de estética e arte, mas nessa frase ele foi bem infeliz (pode ser que esteja fora de contexto, mas o que importa é a ideia que o grupo quis passar).  Não vou me focar muito na questão dos operários, pois eles dirão que foi o desenvolvimento capitalista que propiciou melhores condições de vida em relação às 16 horas de trabalho extenuante nas fábricas insalubres do século XIX. Sem dúvida, a afluência das sociedades social-democratas só foi possível com o desenvolvimento capitalista, mas muito provavelmente, esse desenvolvimento capitalista tal como o conhecemos só foi possível graças aos níveis sem precedentes de igualdade real e formal (muito mais do que nos regimes comunistas, modelos de igualdade para a esquerda) que esse modelo gerou.

Sobre a questão das mulheres e dos animais (algo me diz que conservadores veem todas essas categorias de maneira semelhante), vou tratar agora. Ora, um dos muitos efeitos de a “esquerda” ter tomado as mulheres como “uma vítima a ser resgatada” foi a diminuição por mais da metade da aprovação social da violência doméstica. No Brasil, só recentemente foi aprovada a Lei Maria da Penha, não por acaso criticada pelos conservadores como um privilégio (algo semelhante ao que dizem ser a criminalização da homofobia ou do já criminalizado racismo). Os gráficos abaixo são da genial obra do psicólogo e linguista canadense Steve Pinker, que traz novo fôlego à teoria sociológica do processo civilizador (que será assunto de um próximo post).

violência doméstica

Essa mudança no zeitgeist não se traduziu apenas em intenções, mas também em ações concretas. Se a violência em geral declinou na sociedade americana desde os anos 1970 (algo que também trataremos no post sobre o processo civilizador), uma categoria especial de violência declinou mais rapidamente ainda, a dos estupros. violência doméstica

O declínio da violência doméstica é ainda mais brutal, ainda mais levando em conta que, no passado, havia muito menos interesse em registrar tais ocorrências. violência doméstica

Valeu a pena, não? Um mundo onde as pessoas podem ter menos medo não garante uma vida mais plena e de maior liberdade?

Sobre os tais “direitos dos animais” vou me ater brevemente. Muito mais do que uma “vitimização da esquerda”, eles são um efeito da expansão de nosso círculos de empatia. Somos dotados naturalmente da capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, algo reforçado pela biologia com a recente descoberta dos neurônios espelho. Embora sejamos dotados dessa capacidade, foi preciso que certas instituições e valores culturais se desenvolvessem para que o círculo daqueles com os quais nos identificamos pudesse ser expandido. Primeiro foram nossos parentes, depois a tribo, a nação, a etnia e, por fim, toda a humanidade. Recentemente, agora que nos demos conta que muitos animais possuem basicamente os mesmos sentimentos que nós (e que também somos apenas mais um mamífero complexo), essa empatia transborda para outras espécies. Por mais que os conversadores se irritem com isso, este é o resultado “natural” do desenvolvimento intelectual humano.

Para fechar, vou falar da última grande “vítima” de acordo com os neocons do Miss Rand, o planeta. Longe de ser uma preocupação tipicamente da “esquerda”, a temática ambiental só muito recentemente passou a ser um assunto político. A esquerda social democrata tradicional não se preocupava com o meio ambiente, pois um melhor padrão de vida estava acima de qualquer preocupação ambiental. Já quanto ao comunismo, nem se fala. Os soviéticos conseguiram transformar um mar em um deserto de sal poluído, numa das maiores tragédias ambientais da humanidade. Pouca gente sabe, porém, que uma das grandes personalidades a trazer à tona o debate sobre o aquecimento global foi a britânica Margaret Thatcher, a “dama de ferro”, tão reverenciada pela nova (e velha) direita da qual trata a postagem. Ela foi uma das únicas lideranças do século XX com formação em ciências naturais (para se ter uma ideia, diz-se que o último presidente americano com formação científica foi Thomas Jefferson). Com sua formação em química, ela estava consciente dos riscos para a humanidade da mudança climática e sabia ler os documentos científicos produzidos sobre o tema, ao contrário da maioria dos conservadores, que, assim como os pós-modernos, tem ojeriza à ciência.

Como se vê, talvez fosse o caso de a nova direita intelectual brasileira conhecer um pouco mais da trajetória das pessoas nas quais ela diz se inspirar.